As transformações que estão modificando profundamente a indústria da comunicação nas últimas décadas provocaram impacto até em atividades menores, como a de crítico de televisão.
Por lidar com conteúdo essencialmente comercial, difundido por um meio mantido por publicidade e audiência, esse profissional sempre foi considerado um primo pobre nos jornais e revistas. Na disputa por espaço e prestígio, ocupava os últimos lugares, na comparação com os colegas que analisam cinema, teatro, artes plásticas e música erudita.
Mas tinha uma vantagem em relação a eles. Como a matéria-prima do crítico de televisão sempre foram obras abertas, novelas e programas que se desenrolavam por meses a fio, os seus comentários tinham o potencial de dialogar com autores e público. Com as plataformas de streaming, que oferecem reality shows, séries e até novelas inteiramente gravadas, os críticos começaram a perder esse trunfo.
Como lembra a jornalista Mariana Marques de Lima, em artigo na Rumores, revista sobre crítica de mídia e comunicação com base na Universidade de São Paulo, essa especificidade da crítica de TV sempre foi central.
“A prática de sua crítica demanda tempo para o acompanhamento da obra e, ao mesmo tempo, é rápida, pois, após determinado capítulo, o crítico deve discorrer sobre o que foi transmitido. A maturação do pensamento para o tratamento de uma ficção deve ocorrer ao longo da narrativa, que dura em média oito meses. Nesse período, a crítica e o crítico conversam com seu público, bem como com os próprios produtores desse conteúdo.”
O artigo resgata o papel determinante de Helena Silveira e Artur da Távola como críticos de televisão. Não foram os primeiros, mas apontaram caminhos que influenciaram muitos que vieram depois.
O jornalista Artur da Távola, pseudônimo de Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros, começou a escrever sobre TV no final da década de 1960, no Última Hora, e levou sua coluna para o jornal O Globo em 1972, permanecendo até 1987. Helena Silveira teve colunas na Folha entre 1970 e 1984.
No artigo “Existe Mesmo a Crítica de TV?”, publicado no jornal O Globo, Távola apresentou uma carta de princípios: “Só falo sobre o que vale a pena; só reclamo de quem tem para dar ou do programa que pode melhorar; só exijo de onde pode sair algo bom; só bronqueio com quem gosto; só critico a quem admiro e de quem algo espero; só destaco programas que representem algo vivo, brasileiro, fecundo”.
Helena Silveira, em um livro de reminiscências, “Paisagem e Memória”, conta que, após aceitar o convite de Claudio Abramo para se tornar crítica de televisão da Folha, percebeu o preconceito dos colegas escritores.
“Meus companheiros de letras achavam que eu estava andando por descaminhos”, escreve. O potencial ainda a ser explorado, naquela década de 1970, a seduziu: “Parecia-me que, no terreno literário, todas as fórmulas já tinham sido encontradas, enquanto a TV guardava todos os seus segredos”.
O diálogo com o leitor, que tanto Távola quanto Silveira já usufruíam, amplificou-se nos tempos atuais, “o que também indica o alargamento da mediação da crítica na qual o crítico pode realizar uma leitura tanto da obra em confluência com seu público quanto das temáticas prementes que surgem nos comentários em redes sociais”, escreve Lima.
Esta conversa com o leitor, infelizmente, hoje é bem menos saudável. As redes sociais se tornaram campo minado e tóxico. E a TV, para a decepção de Távola e Silveira, surpreende cada vez menos.
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