Nem de longe é surpresa. Tá lá no ranking de tendências do google: a busca por “Fernanda Torres” aumentou mais de 1000% nos últimos dias.
Eu contribuí, sem dúvida. Como comentou a Joanna Moura, a comemoração brasileira do Globo de Ouro nos últimos dias tem gostim de final de Copa. Todo mundo torcendo, todo mundo feliz.da.vida com o (justíssimo, glorioso, antes-tarde-do-que) reconhecimento das Fernandas, ciclo completo, 25 anos de diferença.
“Vivi para ver isso (…) Bravo, minha filha. Bravo”, comemorou publicamente a Montenegro, indicada ao prêmio em 1999 por “Central do Brasil”, ela mesma intérprete da personagem principal de “Ainda Estou Aqui”, Eunice, no fim da vida.
Mas a comemoração transcende as Fernandas: essa edição do Globo de Ouro é também uma vitória da maturidade feminina nas telas.
Das indicadas à categoria de protagonistas de melhor drama junto com Fernanda, as caçulas, Angelina Jolie e Kate Winslet, têm, ambas, 49 anos. As demais, Nicole Kidman, Pamela Anderson e Tilda Swinton, oscilam entre os 57 e 64 anos de idade.
Na mesma noite, Demi Moore, ao receber o prêmio por “A Substância”, falou de si, mas poderiam ser outras. Emocionada, diz que 35 anos atrás acreditou num produtor que a classificou como uma “atriz pipoca”, do tipo que enche os cinemas, mas jamais teria seu talento reconhecido. Longas décadas depois, lá estava ela, no último domingo (5), aos 62 anos de idade, recebendo finalmente o primeiro prêmio de sua vida.
“Naquelas horas em que não nos achamos inteligentes, belas ou magras o suficiente (…) Uma mulher me disse: ‘você nunca será suficiente. Mas pode saber a grandeza do seu valor se largar a régua de medir”.
“Se você é uma mulher 50+ em um papel principal, chamam de comeback [regresso após um período de ostracismo]”, alfinetou a humorista Nikki Glasser (40), apresentadora do evento. “Se você é um homem 50+ num papel principal, parabéns — você vai ser o namorado da Sydney Sweeney [jovem atriz que atuou em “Euforia”, “Clementine”, “Todos menos você” e outros]”.
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Apenas alguns anos atrás, em 2020, um estudo intitulado The Ageless Test (o teste sem idade, em tradução literal) realizado nos Estados Unidos chegou à conclusão de que nenhum, absolutamente zero dos blockbusters/sucessos de bilheteria do ano anterior (2019) havia contado com uma protagonista de mais de 50 anos de idade e que, além do mais, quando aparecia uma ‘cinquentona’, era em geral pra cumprir com um papel estereotipado ou beirando o caricato.
Nesse levantamento, observou-se que as personagens 50+ eram caracterizadas como teimosas (33%), pouco atrativas (17%) e mal-humoradas (32%). Algo similar ao observado nesse estudo: em um levantamento de comédias românticas de êxito entre 2000 e 2021, a maioria das personagens 60+ era heterossexual, branca e classe média, sendo que 60% foram retratadas como melancólicas e 83,3% como ranzinzas (contra, respectivamente, 40% e 16,7% dos homens da mesma faixa etária).
Além disso, segundo o Ageless Test, essas personagens femininas 50+ tiveram 3 vezes menos sexo do que mulheres mais jovens. E, no geral, corresponderam a apenas 25% de todos os personagens 50+ de 2019 — os outros 75% eram homens.
A atriz Geena Davis, fundadora do instituto que promoveu o estudo junto com a marca Teena, na época declarou: “não só precisamos incluir adultos 50+ diversos em nossas histórias como também mostrá-los vivendo vidas plenas, para combater a estigmatização dos estereótipos em torno do envelhecimento”.
Em entrevista ao The Guardian, Geena disse que não conseguiu mais papéis depois dos 40. “Assim que eu cumpri 40, estava fora”, disse.
“Você não vê com frequência mulheres na faixa dos 60 interpretando papéis principais românticos, mas verá homens na faixa dos 60 em papéis românticos contracenando com atrizes décadas mais jovens”, disse Jessica Lange (75). “Poucas atrizes maravilhosas da minha geração ainda estão fazendo um trabalho cinematográfico viável e importante. Você vai para a televisão. Você vai para o palco. Você faz o que pode, porque quer continuar trabalhando”.
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A premiação do último domingo, vamos acreditar, está apontando numa direção nova. Em breve. Talvez. Um pouco. Pelo menos.
Eunice, a personagem histórica representada por Fernanda em “Ainda Estou Aqui”, foge de todos os estereótipos acima. É complexa, vital, verdadeira. Real.
Não fugiu da vida, mas foi de encontro a ela.
E a vida de encontro a Eunice: arrancou-a do papel naïf de mãe-classe-média-subúrbio-Rio-70s e lançou-a, sem dó nem maiores explicações, sem co-star galã, sem salvação nem salvaguarda, num vórtice de percalços, dores e injustiças.
Essa mulher perdurou na arte e na estrada, com o coração valente, lágrimas, amor, toda a complexa e inesgotável poção que compõe o Ser Humano.
Uma personagem incrível, inestereotipável, com uma história incrivelmente eloquente, um fundo histórico que ainda grita, plasmados em cinema por mãos amorosas — grande Walter Salles e equipe, por cierto. Histórias e vitórias de Fernandas, Eunices, eu e tu.
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