Recentemente, um episódio no mínimo equivocado chamou a atenção para uma questão antiga e dolorosa: a rivalidade feminina. Durante o programa “Vamos las Chicas”, da televisão argentina Canal de la Ciudad, três apresentadoras —Victoria Casaurang, Mercedes Cordero e Paula Galloni— usaram o humor ácido e muito crítico para falar da aparência de Fernanda Torres, que havia acabado de ganhar o Globo de Ouro de melhor atriz. No espaço que poderia ter sido usado para celebrar o seu talento, as apresentadoras desmereceram sua conquista e zombaram de sua aparência.
Esse evento é apenas mais um exemplo de algo que todas nós, mulheres, já testemunhamos em algum momento de nossas vidas: a misoginia que praticamos contra nós mesmas. E aqui surge a pergunta que precisa ser feita: por que somos tão críticas umas com as outras? Por que, em vez de nos erguermos juntas, tantas vezes nos destruímos mutuamente?
A resposta é complexa e dolorosa. Ao longo da história, fomos ensinadas a competir, a desconfiar e a nos medir pelos padrões impostos por uma sociedade patriarcal. Nossa sobrevivência muitas vezes dependeu de agradar, de nos moldar e de nos encaixar. Esse sistema nos separou, nos isolou, nos tornou alvos umas das outras. Afinal, em um mundo onde recursos, sejam eles oportunidades, atenção ou reconhecimento, são escassos, é fácil enxergar na outra mulher uma rival, não uma aliada.
O que aconteceu com Fernanda Torres reflete algo que transcende a indústria do entretenimento. A hostilidade entre mulheres está presente em empresas, escolas, lares e, claro, nas redes sociais. Quantas vezes vemos mulheres julgando umas às outras por suas escolhas de carreira, estilo de vida, corpo, roupas, cabelos, comportamentos ou até mesmo pela maneira como educam seus filhos? Cada crítica, cada olhar de desdém, cada tentativa de diminuir a outra, mesmo que velada, é um reflexo de um sistema que nos ensinou a sermos adversárias.
Mas o que ganhamos com isso? A resposta é nada. Ao contrário, todos perdemos. Perdemos a oportunidade de construir uma rede de apoio verdadeira. Perdemos a chance de criar um mundo onde mulheres possam ser celebradas por suas vitórias, não atacadas por elas. Perdemos a irmandade que tanto necessitamos.
Isso não significa ignorar que a crítica pode ser construtiva e necessária em muitos contextos. Mas existe uma linha clara entre apontar algo com intenção de ajudar e ferir deliberadamente. O comportamento das apresentadoras argentinas foi infeliz, deixando claro que não foi um ato de reflexão crítica, mas uma demonstração –baseada, segundo elas, no humor— de diminuir o brilho de Fernanda Torres em um momento de triunfo.
Superar esse ciclo de hostilidade exige trabalho interno e coletivo. É preciso que cada uma de nós reflita sobre como participa, ainda que inconscientemente, desse comportamento. Quando foi a última vez que você julgou outra mulher de forma severa? Quando foi a última vez que você sentiu ciúmes ou competiu com outra mulher, em vez de admirá-la e apoiá-la? Essas perguntas são desconfortáveis, mas necessárias.
E também é preciso reconhecer o contexto maior. Mulheres não são naturalmente inimigas umas das outras. Somos condicionadas a agir assim. O patriarcado nos treinou para aceitar migalhas, para disputar entre nós por pequenos espaços, para acreditar que o sucesso de uma significa o fracasso da outra. Quando entendemos isso, começamos a questionar as narrativas que nos foram impostas.
Fernanda Torres não precisava ser defendida das críticas, pois seu talento fala por si. Mas o episódio nos lembra que ainda temos um longo caminho a percorrer. Precisamos aprender a nos celebrar. Precisamos reaprender a ser irmãs, a nos apoiar, a nos erguer em conjunto.
Porque, juntas, somos invencíveis. Divididas, apenas perpetuamos o sistema que nos oprime. Que esse episódio sirva como um chamado à reflexão. Que possamos transformar ciúmes em inspiração, críticas em apoio, competição em sororidade. Afinal, o mundo já é difícil o suficiente para as mulheres. Não precisamos torná-lo ainda pior para nós mesmas.
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