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Em homenagem à professora Diva Guimarães, que nos deixou nesta semana, aos 85 anos, esta coluna traz a transcrição de seu emocionante discurso na Flip em 2017. É uma fala que sintetiza questões centrais do Brasil.

Bom dia. Eu fiquei muito feliz quando você se referiu que a gente está numa plateia de maioria branca. Por que que eu vou dizer isso? E eu fiquei muito feliz quando… Desculpem. Quando você falou da parte da educação. Eu sou duma região do sul do Paraná. Quer dizer, eu vim do interior do Paraná, lá do mato, estudar em Curitiba. Teve ontem a palestra das moças que me tocou profundamente, porque eu sobrevivi e sobrevivo como brasileira, porque tive uma mãe que passou por todo tipo de humilhação para que nós pudéssemos estudar.

Desculpe que estou me estendendo. É a grande oportunidade da minha vida para eu falar. Fui para um colégio interno aos cinco anos. Ia completar cinco. Passavam as freiras —para quem é do interior, do mato, sabe que tinha um negócio da religião chamado “missões”. Eles passavam pelas cidades recolhendo crianças, como se fosse em troca de você ir para essa escola. Mas a gente foi para trabalhar. Trabalhei duro desde os cinco anos. Sou neta de escravos. A gente teve uma libertação que não existe até hoje.

Então, vou ser bem rapidinha. Bem, não vou ser tão rápida assim. Vou contar uma história que marcou a minha vida. Aos seis anos, eu senti a diferença. Porque as freiras contavam a seguinte história: que Jesus, Deus, criou um lago, um rio, e mandou todos tomar banho na água abençoada daquele maldito rio. Aí, as pessoas que são brancas é porque eram trabalhadoras e inteligentes. Elas chegaram ao rio antes, tomaram banho e ficaram brancas.

Nós, negros, somos preguiçosos —e não é verdade, porque este país vive hoje porque meus antepassados deram condições para todos. Então, nós, negros, chegamos no final, quando todos tinham tomado banho e o rio só tinha lama. Então, nós temos a palma da mão clara e a sola dos pés, porque foi só o que conseguimos tocar no rio. Isso a freira explicava a história para contar aos brancos como a gente era preguiçoso. E isso não é verdade, porque senão a gente não teria sobrevivido. E eu sou uma sobrevivente pela educação, pela luta da minha mãe.

Eu era rebelde. Tinha até vontade de matar. Eu falava para minha mãe: ‘Eu não vou para a escola!’. Porque ela tinha que pedir caderno, lápis e lavava roupa dos outros em troca do material escolar. E porque eu tinha que entregar as roupas nas casas para ajudar minha mãe. E ela dizia para mim, num gesto que me lembrei ontem durante a palestra das mães: ‘Olha bem pra mãe. Olhou bem? Se você quiser ser como a mãe, não vá para a escola…”. Eu falava assim: ‘Igual a senhora nunca que eu vou ser!’. Ela falava: ‘Só tem um jeito, vá estudar!’. E eu pegava meu caderninho e ia correndo para a aula, acreditando.

A gente, como negro, não é querer ser vítima. Eu não sou. Sou grata a minha mãe e grata também a algumas exceções, porque quando ela falou do racismo, eu falei para a moça aqui do meu lado ‘ela não está falando de Portugal, ela está falando do Brasil, nos dias de hoje’. E porque também, para eu vencer, para eu conseguir trabalhar em Curitiba —que todo mundo acha que Curitiba é cidade europeia, de intelectuais… De coisa nenhuma! Vá viver em Curitiba como negro e como morador da periferia para vocês tirarem esse encanto de Curitiba. Não é. Na real, não é. E é tida como uma cidade evoluída, porque é uma cidade europeia. Tem as coisas boas em Curitiba, na realidade tem. Mas os cotistas negros e indígenas sofrem muito preconceito dentro de todas as universidades.

Fui uma professora muito defensora dos meus alunos e fui uma pessoa que trabalhou na época da ditadura. Os alunos diziam “ah, professora, porque eu não quero mais, porque isso e aquilo”.

Eu contava minha história —não como miséria, sofredora, mas para mostrar que eles eram capazes. “Você tem dois olhos, dois braços, você pensa. Você quer ser respeitado. Seja melhor que eles, estude! Porque ele vai precisar de você e ele vai respeitar.” Eu era considerada, dentro da minha escola, como uma pessoa subversiva, porque eu passava isso para as crianças. Então é isso que eu tenho que falar, porque minha história é longa. Mas eu, com todo preconceito, com todas as coisas, ainda venci.

Estudo até hoje. Aí as pessoas falam: “Mas por que você estuda? É para a minha cabeça, eu quero raciocinar, eu quero saber o que eu estou lendo, o que está acontecendo com o meu país, o que está acontecendo. Obrigada.

Nós que agradecemos, Diva. Que a senhora descanse em paz!


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