Nunca revi “O Homem Elefante”, de David Lynch.
Em parte, por covardia. O filme arrasou-me o sono na adolescência. O drama do homem com cabeça descomunal; seu cérebro disforme por imensos coágulos. A pessoa doce e sofrida, que fora transformada em atração de circo.
O tratamento em um hospital, com o cuidado de um médico personificado impecavelmente por Anthony Hopkins. O ator demoraria anos para ser reconhecido como estupendo artesão, comedido em “Vestígios do Dia” e “Terra das Sombras”, ou atrozmente sedutor em “Silêncio dos Inocentes”.
No filme “O Homem Elefante”, contudo, dominava o drama do protagonista. Ele não podia se deitar e dormir em razão do risco de arrebentar seus coágulos. O repouso apenas podia chegar com a aceitação da morte.
A imagem em preto e branco, a delicadeza da câmera; a angústia que resulta do encontro de atores e de um dilema, duro, sofrido, angustiado, a ser enfrentado.
Não há surpresa com o fim, facilmente previsto desde o começo. E, no entanto, o filme me estatelou.
Houve outra razão para não rever “O Homem Elefante”: o receio de quebrar o encanto.
As circunstâncias por vezes são essenciais para o impacto da arte. Os temas comezinhos das nossas vidas, os acidentes do momento que passamos. Nem toda arte preserva seu impacto ao ser revista em novos contornos.
Alguns se surpreendem quando proponho que John Ford não tenha envelhecido bem. Ou ficam horrorizados quando falo o mesmo de Stanley Kubrick.
Mas ainda existe o encantamento com Billy Wilder, ou Frank Capra de antes da segunda guerra (vamos combinar que “Arsenic and Old Laces” é uma obra prima?).
Hitchcock continua com bons momentos. “Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman, não deixa de surpreender e comover a cada vez que o revejo.
David Lynch deu moldura a uma época de exageros. A estética das cores exuberantes dos anos 1970 fora substituída, na década seguinte, por uma geração que optava pela brutalidade das fantasias perversas na arte, combinada com o exagero da valorização do sucesso dos yuppies.
Ele teve fracassos memoráveis, como “Duna”, um filme que, segundo Lynch, foi destroçado pela montagem final, na qual não teve voz. Acho que não. O filme é ruim, ainda que reflita uma época.
Ele também dirigiu “Coração Selvagem”, que inaugurou a filmografia dos desdobramentos surpreendentes, com ares de “Pulp Fiction”, como as do começo da carreira dos irmãos Cohen e de Tarantino. A violência desmedida, as circunstâncias inesperadas que geram horror e gargalhadas descontroladas.
Há diferenças. Nos Irmãos Cohen, a filmografia é impecável. Em Tarantino, se destacam os diálogos e os detalhes nas filmagens das cenas.
David Lynch tinha seus caminhos que se bifurcam. Havia sonhos perturbadores, como em “Cidade dos Sonhos”, em meio a muitos projetos que começavam sem saber como terminariam. Alguns inícios impecáveis foram concluídos de forma desastrosa e atabalhoada, como ocorreu com “Twin Peaks”.
A cada um cabem as suas predileções. No meu caso, tenho especial preferência por filmes menores, com um pequeno drama, ou desencontro, a ser resolvido. Como na vida, prefiro os temas em que há um problema a ser enfrentado. O desenrolar é o que conta.
“Arsenic and Old Laces”, com Cary Grant, dirigido por Frank Capra, é um desses. Grant, que era um espetacular ator corporal, também é o protagonista de outro adorável pequeno filme: “Walk, Don’t Run”. Em ambos, o notável andamento das câmaras. O mesmo ocorre na obra-prima “A Marca da Maldade”, de Orson Welles.
David Lynch tem pelo menos um filme que merece ser incluído na coleção dos que devem ser revistos, apesar de todos os receios: “Straight Story”.
Para muitos, trata-se do que menos parece Lynch entre os seus filmes. O roteiro é uma versão delicada e sutil da “Odisseia”. Um homem envelhecido tenta retornar aos seus laços iniciais. Tudo em meio às suas tragédias laterais, como o drama vivido pela incrível Sissy Spacek.
Os encontros surpreendentes, a solidariedade inesperada de pessoas que parecem de velhos tempos. A viagem parece impossível de terminar. Entretanto, um dos finais mais comoventes a que já assisti.
Richard Farnworth, que interpreta Alvin Straight, o inesperado protagonista que nos tira do chão, encontra o irmão adoentado, lindamente interpretado por Harry Dean Stanton. Uma varanda. Dois atores que sabem da sutileza. E um diretor que conhece a arte.
David Lynch foi ainda grande ator. “What Did Jack Do?” é um curta delicioso sobre o interrogatório de um macaco, disponível na Netflix.
O diretor de cinema Steven Spielberg com frequência é refém do espírito melodramático e fins acrimoniosos das novelas do século 19. Mas constrói cenas como poucos. Os ângulos surpreendentes da sua câmara, os cortes inesperados. Como as frases de Eça de Queiroz. Impecáveis.
Eça também sucumbe nos seus romances ao dramalhão. E quando se libertava das receitas da época, era divertidíssimo, como em “A Ilustre Casa de Ramires”.
No filme “Os Fabelmans”, Spielberg conta de sua família e da sua vida. Querendo se tornar cineasta, vai a Los Angeles e, por acidente, consegue entrar na antessala de John Ford. O que se segue é antológico.
David Lynch faz a personagem de John Ford, chegando atabalhoado, com marcas de batom no rosto. A secretária ansiosa o segue, e volta com mais borrados de vermelho, do rosto que fora limpo. O que se segue é uma aula quase instantânea sobre o que é arte e como filmar. Menos de três minutos de filmagem, disponível no YouTube.
Os mais velhos que me perdoem, mas acho que John Ford teria orgulho de atuar em uma cena personificando David Lynch.