Aquele abacaxi estava tão doce que eu quase comi ele todo antes mesmo de esvaziar a sacola da feira. Tenho esse costume hoje que estou em sobriedade: compro cada vez mais frutas e experimento uma a uma devagarinho, para sentir bem o gosto. Pareço uma criança que descobre os sabores.
Como a fruta pura, é raro fazer suco. Naquele dia minha vontade era voltar à feira e comprar mais quatro abacaxis. Pois é, a compulsão sempre aparece em algum lugar. Não ligo, acho graça dessa nova Alice saudável. Pensei nisso enquanto desembalava as compras na cozinha. Peixe, mamão papaia, castanha de caju, alface, ovos, manga… tudo ali, em cima da mesa, parecia uma obra de arte. Estava distraída quando ouvi o pin do celular. “Comecei a ver “Comissária de bordo”, já viu? A protagonista é alcoólatra. HBO”. Era a Márcia, sempre atenta ao tema. Deixei tudo em cima da mesa e já comecei a ver no celular mesmo.
Cassie é uma aeromoça. Bebe bem. Lindíssima. A atriz que interpreta é a Kaley Cuoco. A série é fraca, mas o desafio para mim foi entender o espanto da Márcia. “Ela bebe muito, demais. Você bebia tanto assim?” Pude comprovar que sim, eu bebia tanto quanto ela. A única diferença, e esse é um ponto em que a série peca, é que não dá para beber quantidades industriais e ficar tão intacta e bela. Não conseguimos ver o lado sujo da bebedeira na aparência de Cassie. Assisti na sala comendo o abacaxi (eu compro ele já descascado, um luxo que o feirante me proporciona).
Alguns detalhes clássicos de uma alcoólatra já aparecem logo no primeiro episódio. Acordar e não lembrar nada do que aconteceu no dia anterior, abrir os olhos pela manhã com a boca seca e virar qualquer líquido que está na frente para amenizar a sensação ruim. Capotar em qualquer lugar chapada, sem se dar conta de onde. Cassie acorda ao lado de um morto! Pois é, é possível.
Claro que voltei às minhas manhãs na ativa. Eu sempre acordava com uma dor de cabeça insuportável, muitas vezes não tinha ideia do que tinha acontecido. Lembrei em especial, e não sei exatamente por quê, do dia em que acordei molhada na cama do meu então namoradinho. Eu tinha feito xixi. Acordei desesperada e fugi do apartamento. Nunca mais tive coragem de procurar por ele. Só mandei uma mensagem: “Por favor, quero trocar seu colchão”. Foi a última comunicação que trocamos. Pior que eu estava gostando bastante daquele menino, mas mais uma vez tinha estragado tudo. Nunca falei disso para ninguém, mas agora estou aqui, me abrindo.
O vazio que fica quando acontece uma coisa assim só é mitigado pelo tempo e pelos ombros amigos. Eu só pude contar com o tempo, nesse caso. Na série, Cassie tem uma melhor amiga, Annie, e demora um tempo até ela ter coragem de contar que tinha acordado ao lado de um morto. Ela não era uma pessoa horrível por ter conseguido dormir ao lado de um morto? Isso poderia acontecer com qualquer um, a amiga diz, tentando consolá-la. Mas na verdade isso só acontece com alcoólatra.
Alcoólatra é capaz de tudo. De matar, de morrer, de fazer coisas inimagináveis. Já pensou ter trinta anos e fazer xixi na cama do seu namorado? É triste demais.
Rebato tudo isso com meus passeios na feira, com meus hábitos novos, com meu presente. Infelizmente não posso modificar o passado.
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