Assim como muitas pessoas, assisti com enorme preocupação à cerimônia de posse e aos primeiros atos de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. É uma aberração dos nossos tempos, e só nos resta resistir com o que temos à disposição.
Também não passou despercebida a presença na posse dos donos das plataformas de redes sociais, como Elon Musk e Mark Zuckerberg. O primeiro, dono do X, o antigo Twitter, se exibiu fazendo gestos nazistas com a certeza de que nada lhe ocorrerá. O segundo, mais discreto, esteve nos holofotes recentemente ao anunciar as novas políticas de abandono da verificação de fatos e tolerância a discursos de ódio pela empresa Meta, que, dentre outras mídias, é dona do Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp.
Penso que devemos, enquanto povo brasileiro, refletir profundamente sobre os riscos de tantas fontes de comunicação pertencerem a uma única empresa que obedece ao sistema político e financeiro dos Estados Unidos. Questionar isso é sofisticar a própria ideia de democracia brasileira, que segue dependente de estruturas tecnológicas e informações mediadas por corporações estrangeiras. Estabelecer redes com critérios que nos sejam comuns e verificáveis é urgente.
Uma forma de remediar essa dependência é a criação de uma rede social brasileira. No mínimo, seria uma provocação interessante. Parafraseando o “poeta”, “we don’t need you”, Estados Unidos.
Assim como as redes sociais americanas tiveram apoio do poder público local para sua expansão, cabe ao poder público do nosso país fomentar alternativas, com o fim de disputar o imenso mercado brasileiro com as gigantes globais, que regulam boa parte do nosso dia, enquanto distribuem seus lucros no chamado norte global.
Esse pensamento não é exclusividade do Brasil. Nos Estados Unidos, o governo obrigou o TikTok, uma empresa chinesa, a ter uma operação e um capital no território americano para operar localmente. Ora, por que o Brasil não pode fazer o mesmo?
Soma-se a isso a necessidade urgente de regular as redes existentes. No caso do X, muito antes de o debate ganhar repercussão, ingressei em 2020, junto a organizações do movimento negro, com uma representação ao Ministério Público Federal questionando mecanismos da plataforma que perpetuam discursos racistas. Segundo pesquisas, mais de 70% dos “Tweets problemáticos” no país são direcionados à população afrodescendente, sobretudo a mulheres negras. Essa plataforma potencializa ataques por meio de seus Trending Topics, sem se responsabilizar pelo conteúdo.
Isso resulta em verdadeiros shows de horrores. Um exemplo foi o caso de uma menina negra estuprada e engravidada pelo tio, que teve seu nome e o endereço do hospital que realizava o aborto legal divulgados na rede social e amplificados pelo Trending Topic, ao lado de monetizações de séries de TV e videogames. Graças a uma obtusa lei do Marco Digital e a absoluta irresponsabilidade da empresa, esse escárnio perdurou dias e só foi retirado do ar por decisão judicial. Obviamente, nenhum lucro gerado durante esse período foi redirecionado à família da menina, involuntariamente “garota-propaganda” do fluxo de hits daquele fim de semana.
Essa representação, que também requeria um dano à coletividade negra e políticas de equidade efetivas na empresa, é o motivo pelo qual meu nome consta no chamado Twitter Files, um compilados de reclamações em e-mails de executivos da plataforma. Mas, de minha parte, tranquilizo esses executivos: no que depender do MPF, o X tem e terá uma vida mansa aqui. Aqui é a colônia, então a empresa pode fazer tudo.
Sua concorrente tech Google teve um caso arquivado pela instituição no último mês. O aplicativo Google Play ofereceu o Simulador de Escravidão, em que um jogador poderia ter escravos, comprá-los e vendê-los, bem como reprimir fugas e rebeliões. O caso foi para a gaveta, e cabe ao MPF explicar ao povo suas razões.
Já em maio do ano passado, o MPF lamentou ter perdido um processo em que requeria R$ 7,4 milhões de um influenciador por conteúdo racista publicado e disponível por anos no X. Me solidarizo com a douta Procuradoria, pois além de sua leniência temos a própria Justiça Federal brasileira, o que fica para outro texto.
No entanto, com esperança fico pensando: se “Tweets” racistas de um indivíduo valem tanto dinheiro, quanto deve à comunidade negra uma plataforma como o Twitter ou a Meta? Essas empresas que já vinham proporcionando o terreno para agressões raciais em escala descomunal e agora o faz de forma escancarada.
Fico no aguardo de uma quantificação e da respectiva ação.
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