A reeleição de Trump dispara muitos alarmes na precária democracia norte-americana e no mundo. Apreensão com clima, saúde, transição energética, desigualdade, hegemonia plutocrática, corrupção, governança global multilateral e decência humanitária chegou a outro patamar.
Se a credencial democrática já era duvidosa em país com sistema eleitoral que suprime voto de parte do povo e poder corporativo ilimitado para influenciar eleições e políticas públicas (financiando ambos os lados), agora a ciência política pode se sentir mais confortável para classificar o regime de “autoritarismo competitivo”.
A última dúvida é saber como vão funcionar os “freios e contrapesos”. Sabe-se que Trump têm hoje mais capacidade para barbarizar. Tem maioria nas duas casas do Congresso, a Suprema Corte foi convertida ao servilismo anti-constitucional já no primeiro mandato e se esmera em revogar sua jurisprudência das liberdades civis.
Sobra alguma autonomia nos judiciários estaduais e federal, e nos governos subnacionais. Sobra a esperança de que a história e o acaso aprontem algo de bom, que o determinismo pessimista possa falhar dessa vez.
A imaginação literária sobre o espectro autoritário nos Estados Unidos tem no livro de Sinclair Lewis, “Não pode acontecer aqui” (It can’t happen here), de 1935, um marco. Em tempos de Grande Depressão e de ascensão de Hitler, ele imaginava um presidente eleito na base do medo, do ódio e de grandes soluções patrióticas. Num autogolpe, instala regime totalitário.
Lewis inspirou uma linhagem: “Aconteceu aqui: recordações da repressão política na América”, 1989; “Não aconteceu aqui: por que o socialismo falhou na América”, 2001; “Pode acontecer aqui: o perigo autoritário na era Bush”, 2007; “Aconteceu aqui: uma história popular antifascista”, 2023, entre outros.
A Alemanha promulgou, em 1949, Constituição que afirmava “nunca mais” para o nazismo. Depositava na corte constitucional e na ideia de democracia militante a expectativa de neutralizar movimentos extremistas e maiorias em taquicardia. Constituições pós-autoritárias do período tentaram seus remédios de “never again”.
FolhaJus
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Hoje a Alemanha vive sob dois alarmes: a perspectiva de guerra com a Rússia e o risco de vitória eleitoral da AfD, partido neonazista. Adota duas medidas preventivas: volta a se armar, na contramão do arranjo de segurança do pós-guerra, e emenda a Constituição para que a corte não possa facilmente ser cooptada por maioria ocasional, como nos vizinhos Polônia e Hungria.
Um dos indicadores da capacidade de resistência democrática à investida autocrática é a autonomia de instituições de Estado. Funções públicas desenhadas para operar de modo imparcial pedem proteção contra a captura. Em especial das instituições de Justiça, sobretudo os tribunais superiores e a cúpula do Ministério Público.
Mas proteção jurídica não basta. A missão depende também do ethos institucional e da disposição individual para não se deixar capturar. Uma questão de cultura e de caráter. De competência intelectual e moral para ser imparcial (e também parecer imparcial, de forma convincente).
No Brasil, o horizonte político faz explodir o alarme. O STF deve fazer mais e melhor, mas não sozinho. Muito menos monocraticamente. Volto ao tema na próxima semana.
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