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Arrigo Barnabé lembra-se bem do choque. Há dez anos, estava à toa numa livraria e pegou na estante um livro de Carlos Drummond de Andrade. Sem prestar muita atenção, relia alguns poemas até topar com “Relógio do Rosário”, que não conhecia. Uau!

O poema não é longo. Tem 22 estrofes, cada uma com dois versos rimados. A maioria é de decassílabos heroicos —os acentuados na 6ª e na 10ª sílabas, os versos de Camões em “Os Lusíadas”. Finda a leitura, o músico de vanguarda estava estatelado. Releu as duas páginas e o impacto se repetiu.

O esquisito é que Arrigo, hoje com 73 anos, não entendeu “Relógio do Rosário”. Quando muito, teve uma ideia embaçada do significado. Comprou o livro e repassou os versos várias vezes. A cada leitura, maravilhava-se; mas coçava a cabeça: o que é isso? O que quer dizer?

É uma reação compreensível porque o poema é… eis aqui o enigma de “Relógio do Rosário”, texto que clama por hipérboles: é um monumento da língua portuguesa; obra ímpar de nosso poeta máximo; arte que vai ao “âmago de tudo” e se nutre “do sal do próprio nada”.

Tempos depois, Arrigo topou por acaso com José Miguel Wisnik, também ele músico e —o decisivo— drummondiano atilado. Perguntou-lhe na lata: “Zé Miguel, por que a dor individual é um afrodisíaco gravado em selo dionisíaco?” Falava do trecho de “Relógio do Rosário” em que a dor, “fogo incerto”, revela o “ser deserto”: qualquer um, você, nós.

Wisnik ensaiou uma explicação e seguiu caminho. Em 2018, publicou “Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração”, cujo último capítulo analisa “Relógio do Rosário”. Arrigo também prosseguiu na lida: compõe, toca, canta, faz concertos e shows, grava, tem câncer (tirou a próstata e se trata com crioterapia).

Seu álbum mais recente é um diálogo-homenagem com Itamar Assumpção, seu amigo das quebradas da vanguarda morto em 2003. São 17 faixas que, além de Itamar (“Nego Dito” e outras), trazem Nelson Cavaquinho (“Quando eu Me Chamar Saudade”), Ataulfo Alves (“Errei, Erramos”) e o próprio Arrigo (“Clara Crocodilo”).

Com samba à beça, o disco esbanja suingue. Mas, em que pese os pés plantados no popular, é dissonante, distorce, aferrolha o ritmo, faz música com máquina de escrever. Corolário: Arrigo, afeiçoado a Schoenberg, recorre ao sistema dodecafônico. O resultado é belo, estranho.

O melhor mesmo, contudo e de longe, é sua interpretação de “Relógio do Rosário”. Não é recitação pomposa nem poesia cantada, coisas que nunca deram certo. É poesia dita com inteligência, ânsia de desentranhar palavras-chave, conclamando-as aos gritos.

Enquanto Arrigo acelera Drummond, a banda Trisca toca de modo minimalista, ecoa em loop o verso de “Dor Elegante”, de Itamar, até que doa no espaço, no caos e nas esferas: “Sofrer vai ser a minha última obra”.

“Relógio do Rosário” fala fundamente de dor —palavra que, assim ou assada, o poema repete 12 vezes. Dor individual e coletiva, dor física e metafísica, dor agora e sempre. Arrigo vira bicho e berra com voz de lixa: “Estamos para doer, estamos doendo!”; uma “dor primeira e geral, esparramada”.

“Relógio do Rosário” encerra o livro “Claro Enigma”, de 1951. Até ele, a poesia de Drummond foi de engajamento crescente e chegou ao ápice com a vitória soviética na batalha de Stalingrado. O socialismo libertário parecia à mão.

Movimento semelhante se deu no Brasil. A ditadura de Getúlio Vargas caiu, vieram eleições livres, o Partido Comunista se legalizou e atraiu multidões. O poeta, alto funcionário do Estado Novo, trocou-o pela “Tribuna Popular”, o jornal do PCB onde passou a escrever.

Mas, aqui e lá fora, o stalinismo sufocou a rebelião no nascedouro, manipulou e reprimiu os trabalhadores. O PCB juntou-se ao Getúlio que assassinara centenas e entregara Olga, mulher de Prestes, aos nazistas.

“Relógio do Rosário” é obra do Drummond do desencanto. De modernista passou a classicizante, de revoltado a amoldado, de comunista a apolítico, de “A Rosa do Povo” a “Claro Enigma”.

Porém, o poema marca uma ruptura maior. A partir da epígrafe do livro —”os acontecimentos me aborrecem”— de Valéry, o poeta se retrai. Para além da política, constata que o amor não é “o motor de tudo”, que ele “murmura algo que foge, é brisa e fala impura”.

“Relógio do Rosário” inaugura uma dicção ausente da arte nacional: a que fala das angústias da vida e do ser, da “dor de tudo e de todos” diante da pedra no meio do caminho. É essa dor sem nome que Drummond articula e Arrigo canta.


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