Não há tema mais relevante nesta semana do que o famigerado DeepSeek, o modelo de linguagem em grande escala que derrubou as ações de empresas que atuam com inteligência artificial no Vale do Silício e chegou a ser chamado de “momento Sputnik” dos chineses (referência à sonda soviética que deu aos americanos o senso de quão atrasados estavam na corrida espacial).
A esta altura, boa parte dos leitores já deve ter dado uma conferida na ferramenta. Aos olhos leigos, nada de muito diferente do que nos acostumamos desde 2023 no reino da inteligência artificial. Sabemos que custou uma quantia ínfima para ser treinado, que usou chips da Nvidia comprados antes das sanções e que possivelmente extraiu dados da OpenAI na tarefa —a suprema ironia, já que ela própria foi acusada de treinar o seu modelo sem se preocupar com direito autoral.
Tudo isso é relevante e deve ser melhor explicado por especialistas no assunto. Mas proponho que nos atenhamos a Liang Wenfeng, o engenheiro chinês por trás da façanha.
Liang já trabalhava com IA desde a década passada, usando aprendizagem de máquina para prever flutuações no mercado financeiro. É descrito por colegas como obstinado e não muito afeito a entrevistas, motivos pelos quais talvez tenha passado anos fora do radar.
No Vale do Silício, chegou a chamar a atenção. Executivos da Nvidia e OpenAI relataram no X que chegaram a convidá-lo para trabalhar nos EUA. Ele não titubeou em continuar na China e focar o sonho de atingir a inteligência artificial geral —o Santo Graal da IA—, em que os modelos seriam capazes de raciocínios complexos sem alucinações.
China, terra do meio
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É, portanto, um ótimo exemplo de como a estupidez coordenada por Joe Biden e Donald Trump pode deixar os EUA para trás nesta revolução trazida pela IA. Em outro momento, quando os americanos se mostravam mais abertos à imigração e a política ainda não havia sido contaminada por tanto nacionalismo, gente como Liang embarcaria feliz para um emprego bem remunerado na Califórnia. Qualquer que fosse seu salário, ele se pagaria com o registro de patentes e a garantia de que empresas americanas continuassem na vanguarda da tecnologia.
Mas Trump inaugurou uma era em que qualquer chinês é passível de suspeita. No primeiro mandato, chegou a passar um decreto que restringia a concessão de vistos a cientistas cujas instituições de origem tivessem laços com o Exército da Libertação Popular. Spoiler: a esmagadora maioria delas têm, como também é o caso das Ivy League americanas e de qualquer país que financie pesquisas acadêmicas com potenciais aplicações militares.
Biden seguiu na mesma toada, com uma política de restrições de exportação, tentando conter a indústria de semicondutores chinesa e, mais recentemente, proteger artificialmente a liderança americana em IA na canetada.
São movimentos equivocados que ajudam a explicar as razões de quase 20 mil cientistas chineses que decidiram deixar a América e voltarem para suas casas de 2010 a 2021, segundo dados do Centro sobre Economia e Instituições da China da Universidade Stanford.
Mais do que as quedas nas ações de Microsoft e Nvidia, o fenômeno DeepSeek e o seu fundador servem para lembrar dos efeitos destes equívocos: ruiu a crença de que americanos estavam anos à frente da China no setor e restou exposta a consequência da falta de planejamento estratégico numa competição que aos poucos vai dando sinais favoráveis claros em direção à Ásia.
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