Depois de uma longa espera, “Ruptura” está de volta. A série da Apple TV+ sobre os funcionários de um misterioso escritório que tem sua memória da vida pessoal “cortada” quando estão no trabalho cativou fãs no mundo todo por essa premissa original e muito interessante. O que aconteceria se o seu eu do trabalho não se lembrasse do eu de casa e vice-versa?
“Ruptura” mostra esse cenário como uma grande distopia, um futuro que queremos evitar. Mas fico pensando se essa ideia não cairia bem no Brasil de hoje, quando todo mundo que conheço (me incluo nessa) não larga o celular por mais de dez minutos, mesmo durante o trabalho.
Talvez a hora do banho ainda seja a grande fronteira a ser transposta. Mas tenho certeza que logo logo o mercado inventa uma capinha impermeável para a gente continuar a dar likes e comentar enquanto aplica xampu no cabelo e lava as partes.
Verdade seja dita: o brasileiro trabalha 100% do tempo com o celular à mão. Se o trabalho é no computador então, a atenção é dividida o tempo todo entre a tela do notebook e a do celular. O caso Fernanda Torres, em que milhões de fãs ensandecidos dominaram não só o post da nossa diva brasileira, mas todos os outros publicados nos perfis de premiações, mostrou ao mundo que somos o povo que mais respira e milita nas redes sociais.
Leitura só de posts
Com todo o respeito à bela campanha que a Sony Internacional fez por “Ainda Estou Aqui” no Oscar, que resultou em três indicações… mas se não fosse a horda de internautas gritando por Fernanda em cada post, ela não teria ido a tantos programas de entrevistas por lá.
A mídia americana tem olho clínico para tudo o que dá audiência (e lucro), e ter Fernanda trouxe uma audiência digital que o público americano não alcança.
Mas se é bom para a campanha de “Ainda Estou Aqui” no Oscar, será que essa histeria digital faz bem para as nossas vidas? A última pesquisa do Instituto Pró-Livro mostrou que 74% dos brasileiros —três a cada quatro— não leu nenhum livro inteiro em 2024. Isso é facilmente verificável no dia a dia. Entre num vagão de metrô e conte quantas pessoas estão mexendo no celular e quantas (provavelmente nenhuma) estão com os olhos em um livro.
Costumo ir de São Paulo ao Rio de ônibus, numa viagem que pode levar de sete horas (no melhor dos mundos) a nove horas (com engarrafamento). Dá para ler um livro inteiro, mas meus colegas passageiros preferem gastar esse tempo imenso vendo fotos e vídeos no Insta, Facebook ou Tik Tok.
Claro, não queremos atrapalhar o trabalho de milhares de influenciadores e comerciantes que dependem das redes para ganhar seu dinheiro. Mas duas horinhas a menos nas redes já daria um belo empurrãozinho na nossa saúde mental.
De Beckett a David Lynch
Voltando rapidinho a “Ruptura”: se você ainda não viu, dê uma chance. A história do executivo Mark Scout e seus colegas é uma atualização do universo sem saída de um Samuel Beckett em peças como “Esperando Godot”, com uma pitada de Kafka (“O Processo”) e atuações que remetem ao estranhamento de David Lynch —no registro soturno de Patricia Arquette (de “Estrada Perdida”) e Tramell Tillman, o sinistro supervisor Milchik.
Para ir treinando, tente deixar seu celular de lado por uma hora para ver a série. Você pode gostar da experiência e, como eles, querer romper esse ciclo vicioso em que estamos todos afundados.
Ruptura – 2ª temporada: Um novo episódio disponível toda sexta na Apple TV+