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Se pensarmos que o tempo também é uma nação, sou conterrânea do “Poema Sujo” de Ferreira Gullar. Eu e este poema nascemos no mesmo ano, 1975. Eu das entranhas de uma mulher. Ele das entranhas de um poeta. Eu no suador de uma sala de parto. Ele no suador da ditatura. Eu alimentada pelas tetas. Ele, pela língua.

Não me identifico tanto assim com nenhum dos meus outros conterrâneos. E olha que 1975 está cheio de rebentos brilhantes, como as músicas “Hotel California”, do Eagles, e “Fame”, do David Bowie. De outros poemas não sei, os poetas não costumam dar certidão de nascimento para cada um de seus filhos. Ferreira Gullar deu porque achava que ia morrer.

Em 1975, estava refugiado na Argentina, em um momento histórico tão atroz que os soldados hermanos poderiam irromper por sua porta a qualquer momento e entregá-lo ao regime brasileiro, como fizeram com outros exilados.

O poeta se põe então a escrever aquilo que julga ser o seu último poema. Uma carta de despedida. Sujo por lançar mão de tudo que é tipo de técnicas e estilos. Grandioso por tentar agarrar a magnitude da vida.

De repente me sinto como Ferreira Gullar. Do lado de fora da minha porta, está a inteligência artificial, os contornos de uma possível terceira guerra, as labaredas e as enxurradas do clima. Quando chegarão até mim? Quando enfim soarão as trombetas do meu apocalipse?

Assim como Gullar, tento me defender usando o único escudo que possuo: a escrita. Mas ao contrário de Gullar, não sou poeta. Tudo o que tenho é a prosa. Na melhor das hipóteses, a prosa poética. Por que não me preparei para o absurdo? Por que não disparei minhas teclas na direção da rima? Por que não treinei meus soldados na trincheira estreita da métrica? Por que não fiz mais flexões apoiada no verso livre?

No dia 22 de maio de 1975, dentro de um apartamento em Buenos Aires, Gullar lançava mão de uma saraivada de letras contra um papel comprado nas redondezas. Saigon era tomada pelos vietnamitas no norte. A disco music explodia nas rádios. Dentro da placenta, eu terminava de formar o meu pulmão e começava a apontar a cabeça para baixo, me preparando para nascer.

Não é possível estabelecer um limite / a cada um desses / dias de fronteiras impalpáveis/, Gullar diz no seu sujo poema. Eu concordo com você, poeta. Eu queria te contar que desde aquele dia em que você escrevia arfando e eu nascia arfando, tanta coisa se passou. Muitas delas você viu. Outras escaparam aos seus olhos já cobertos de terra e areia.

Na tarde de 22 de maio de 1975, para lá da sua porta, havia uma ameaça concreta. Na manhã de 5 de fevereiro de 2025, para lá da minha porta, há ameaças difusas. Um certo medo, uma atmosfera desconfortável. Chamas que rondam pavios. Pitonisas digitais que sussurram: estopim. Por isso tento escrever. Um poema sujo. Um poema que abarque o meu tempo. Ra ta ta ta tá! Mas não sou poeta, não sei fazer granadas de heptassílabos. Tudo o que consigo escrever é uma coluna. Que ao menos seja suja, imunda, maculada, molhada atrás do jeans contra toda forma de moralismo.


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