Os vestibulandos que enchem suas redações de “outrossim”, “destarte” e mesóclises, acreditando que esse verniz juridiquento é necessário ao bem escrever, deviam ler a denúncia do procurador-geral da República.
Que outros analisem a peça histórica de Paulo Gonet Branco do ponto de vista jurídico, político, criminal, carnavalesco, memístico. Ela merece tudo isso. Aqui eu vou falar de estilo, de palavras.
O fato de estar expressa em língua de gente, aquela que brasileiros alfabetizados entendem, reforça a autoridade moral de uma denúncia devastadora contra a organização criminosa em questão. Sua clareza circunspecta é a que se encontra em grandes documentos cívicos cientes da importância de seu papel.
“Uma democracia que não se protege não resiste às pulsões de violência que a insatisfação com os seus métodos, finalidades e modo de ser podem gerar nos seus descontentes”, afirma a certa altura.
O paradoxo da tolerância de Popper, que fixa no combate a quem o nega o limite desse sentimento democrático fundamental, poucas vezes terá tido expressão tão sóbria.
Por mais composta que seja, a prosa do PGR não deixa de pagar seus pedágios ao juridiquês: “A peça acusatória minudencia [detalha] trama conspiratória armada e executada contra as instituições democráticas”.
No entanto, num tempo de opinião pública afogada em versões mentirosas mantidas em circulação por muita inteligência artificial e muita burrice natural, o efeito de seu “j’accuse” em defesa da Constituição é o de água fresca no deserto.
“Evidenciou-se que os denunciados integraram organização criminosa, cientes de seu propósito ilícito de permanência autoritária no Poder.”
E ainda, no que a língua popular chama de dar nomes aos bois: “A organização tinha por líderes o próprio Presidente da República e o seu candidato a Vice-Presidente, o General Braga Netto”.
O resultado do papo reto é que basta ler a denúncia sem lentes partidárias para constatar que a conspiração pelo assassinato da democracia brasileira foi arquitetada à vista de todos pelo ex-presidente e seus comparsas.
A denúncia mapeia ao longo de um ano e meio os rastros grosseiros deixados por “uma organização criminosa constituída desde pelo menos o dia 29 de junho de 2021 e operando até o dia 8 de janeiro de 2023”.
Monta assim um amplo painel de fatos em cadeia para pedir ao Supremo que ponha os acusados na cadeia —mobilizando, ora veja, os dois sentidos principais dessa palavra fascinante.
Cadeia é um substantivo derivado do latim “catena”, corrente. Não, a corrente que prende não é a mesma que, por metáfora, nomeia o encadeamento de unidades, elos. Mas a palavra cadeia dá conta dos dois sentidos, um se desdobrando do outro.
O que no fim das contas a peça de Gonet “minudencia” com fartura de provas (produzidas pelos próprios denunciados) é que os caras saíram atrás da nossa democracia para abatê-la a pauladas na esquina, feito uma cadelinha hidrófoba de Nelson Rodrigues.
Pode isso, Arnaldo —perdão, Alexandre? Pode não. Ou o Brasil traça esse limite claramente agora ou nossa democracia estará com a cabeça a prêmio.
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