A história de superação de Cafu, que foi reprovado em nove peneiras para só então engatar no futebol profissional e mais tarde ser o grande capitão do penta, virou storytelling de um comercial de uma “bet”.
Outros de seus companheiros de 2002 também surfam a onda. Nada disso surpreende e ofereço aqui menos crítica do que constatação —ou consternação. O fluxo é antigo: Pelé promovendo vitamina; Gerson, cigarro; Miles Davis, sochu.
Mas num país em que ídolos do esporte têm voz muito mais potente do que pessoas também públicas que de alguma forma atuam para reduzir ou ao menos lançar luz sobre a nossa maior chaga —o fosso social—, e sendo boa parte desses ídolos pessoas que comeram o pão que o diabo amassou, é de se pensar se a publicidade não acaba por tirar a potência de todas essas histórias memoráveis, transformando-as numa gororoba qualquer.
Não advogo aqui limites à publicidade, algo que talvez seja um imperativo de saúde pública e de cidadania em certos segmentos, nem reclamo uma contribuição compulsória dos ídolos do esporte a um programa visando um suposto bem comum.
O que faço algo pateticamente é registrar meu incômodo com a apropriação sem mais aquela de figuras que talvez pudessem, por sua gigantesca popularidade, mudar alguma coisa.
João Fonseca nasceu em outro berço, o que logo se vê pelo esporte que pratica em altíssimo nível. Mas suas enormes destreza, força de vontade e obsessão pela vitória “furam a bolha” e falam diretamente com milhões de brasileiros. Pois bem: a ele, rapidamente, talvez até em razão dos negócios do pai, colaram-se instituições financeiras.
Não sei bem como instituições financeiras podem contribuir para o bem comum ao buscar essencialmente maximizar o lucro. Quero crer que não temos visto o tal bolo crescer para enfim ser dividido; e a ideia de que elas podem ser ferramentas de prosperidade ao alavancar diversos setores também tem furos.
De acordo com a taxa de juros, é muito mais seguro fazer o dinheiro “trabalhar” do que arriscar no setor produtivo. E o setor financeiro não costuma reclamar quando o Banco Central sobe a Selic.
Quando as empresas, há mais ou menos três anos, estavam naquela de falar em legado e coisas do tipo, dirigentes da instituição que patrocina Fonseca diziam querer levar educação financeira a milhões de brasileiros. Na briga com os bancões, era sua forma de estar do lado bacana da história. O legado.
O problema é que o sistema não contempla todos. Se os de baixo sobem, quem fica mais embaixo? E a instituição, por seu lado, também não gostaria de ser “bancão”?
Em 1998, numa crítica nesta mesma Folha aos Racionais Mc’s, não poupei Mano Brown e companheiros por não impedirem nem inibirem o coro de “filha de puta” que sua entourage direcionava a Carlinhos Brown enquanto a banda recebia desse mesmo Brown o prêmio a que fizera jus numa competição da MTV.
Era talvez uma tentativa de imprecar pela última vez contra o sistema; e, ao mesmo tempo, uma derrota avassaladora diante da mão invisível e amorfa dessa Coisa Maior, Coisa que eles antes haviam tentado quixotescamente combater, recusando-se, por exemplo, a falar com a “mídia burguesa” ou a cantar em espaços frequentados por “playboys”.
Vinte e sete anos depois, eis-me também a xingar Carlinhos Brown ao me incomodar com a bet que fez da linda história de Cafu uma gororoba qualquer.
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