Foi Hugo Chávez quem melhor sintetizou o pensamento de Tariq Ali. Em 2003, o caudilho bolivariano disse ao esquerdista anglo-paquistani: “Não estamos num período de revoluções… É melhor morrer lutando do que empunhar a bandeira imaculada da revolução e não fazer nada”.
Tariq Ali jogara no lixo a bandeira da revolução em 1981, na aurora de Reagan e margareth Thatcher e da contrarrevolução neoliberal: privatização, desmonte de serviços públicos, concentração de renda, mãos livres para o capital financeiro e mão pesada no lombo dos pobres.
Até então, Ali ia de foice e martelo. Nasceu numa família socialista de Lahore, cidade indiana que veio a integrar o Paquistão. Participou de protestos anti-imperialistas na adolescência. Teve formação clássica em Oxford. Foi trotskista e liderou uma facção da 4ª Internacional. Era unha e carne com John Lennon e Mick Jagger.
Caiu do cavalo na estrada de Damasco, levantou, sacudiu a poeira e anunciou a adesão ao brando trabalhismo, que de esquerda não tinha nada. Logo saiu do Labour, mas o emblema ficou: o paladino de 1968 fora da revolução à reforma, do socialismo à realpolitik, do galope juvenil ao pocotó senil. Viva!
O tempo mostrou que a direita não tinha o que festejar. Ali está com 81 anos e não pôs o pijama. É useiro e vezeiro em deblaterar contra a opressão imperial e a exploração dos dominados pelos dominantes. Não é revolucionário —está mais para Maduro que para Marx—, mas suas peripécias peripatéticas fazem um barulhão.
Saiu agora “You Can’t Please All: Memoirs 1980-2024“, livro em que relata suas décadas de reformismo. São 800 páginas de alhos e bugalhos: textos inéditos e artigos mofados, perfis e obituários de camaradas, diários, diálogos e um interlúdio interminável —seis capítulos— sobre sua família.
Em que pese a balbúrdia, o livro tem eixo: as colisões entre resignação e rebeldia na mente de um militante que, ao abandonar a causa socialista, não passou a defender o status quo. Em vez disso, entregou-se a uma contestação tão frenética quanto palavrosa.
Sua charanga reverbera velhas questões. Dá para deter a destruição da natureza com a política podre em vigor? É possível obter justiça no mundo sem uma articulação internacional dos injustiçados? Só denunciar adianta? O capitalismo é o limite máximo da felicidade? Que fazer?
Lênin sabia o que fazer —mas há um século, e a Internacional que criou também não aguentou o tranco contrarrevolucionário. Ali abjura Lênin e, como a esquerda toda, não tem ideia do que fazer. E quem não sabe, ensina: publicou 52 livros, orgulhosamente listados em “You Can’t Please All”, e conta que recebe 50 convites por mês para viajar e palestrar.
Sobre o que tanto escreveu? A respeito de tudo, ou quase: Paquistão, Reino Unido, Índia, Chile, Irã, Margaret Thatcher, Gandhi. Cansou? Pois ainda fala de Trótski, Nehru, 68, Stálin, Bush, Edward Said, Obama, Spinoza, Churchill e, ufa, Lênin. Atenção: essas pessoas, países e problemas estão nos títulos; dentro dos livros fervilham milhares de temas e gentes. São romances, reportagens, roteiros, diários, ensaios, entrevistas.
Ele pode saber toneladas de coisas, mas, ao falar do Brasil, vende gato por lebre. Relata que em Olinda, depois de criticar o PT numa conferência, uma beldade lhe disse que concordava com as restrições ao partido. Contaram-lhe que era uma famosíssima atriz de novelas que se divorciara havia pouco de um político do PT.
Segundo Ali, a moça se chamava Maria Paula Gonçalves da Silva. Perdoe-me a ignorância, mas nunca a vi mais gorda. Uma googlada informa que houve, sim, uma celebridade com esse nome. Jogava basquete e atendia pelo apelido, Magic Paula.
Também deita falação sobre Marta Suplicy: “Na ditadura, reuniões clandestinas da direção do PT eram feitas no seu luxuoso apartamento, e Lula tinha que entrar pela porta de serviço”. O caso é ótimo; pena que fantasioso. O PT nunca esteve na clandestinidade. Marta morava numa casa (na rua Grécia) e só se mudou para um apartamento em 2001.
Cometer erros no varejo é pecadilho. O pecado imperdoável é insinuar e fofocar —e Tariq Ali espalha maledicências sobre o sociólogo brasileiro Emir Sader e o jornalista inglês Christopher Hitchens.
Não lhe basta ser um áulico de Chávez, ou afirmar que era superior a Lula. É sua opinião. O abuso é dar a entender que a Casa Branca o envenenou. Isso não é reformismo. É usar a imoralidade da extrema direita para enxovalhar os adversários.
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