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Há sinais de reação popular à tentativa de supostos novos donos do poder de pautar anistia aos golpistas do 8 de Janeiro. Anistia, do latim “amnestia”, mesma etimologia de amnésia, implica perdão e esquecimento. A capricho dos algoritmos, o digitalismo esquece, mas a vida histórica pode não ser tão leviana. Indicação é como o ex-presidente foi recebido no estádio Mané Garrincha em Brasília. Bateu em retirada às pressas sob os gritos da multidão de “uh, vai ser preso!”.

“Ainda estamos aqui”, uma apropriação do filme aclamado, virou lema de recordação proativa dos traumas cívicos infligidos à sociedade. Não apenas lembrar, também manifestar um espírito ainda vivo e resistente, como um invisível do sentimento de existência, que é o modo geral de apreensão da experiência de vida.

Pesquisadores da forma veem na palavra sentimento não algo redutível à emoção nem à representação coletiva, mas um modo de sensibilidade que induz a um conhecimento afetivo de questões globais. Um modo que se reconhece pela diferenciação entre campos distintos da experiência social. Assim, o sentimento dominante no período do regime militar era de que se viviam “anos de chumbo”.

Hoje, o que se expressa na memória coletiva funda-se nas evidências tenebrosas de relatos de vítimas, Comissão da Verdade, livros e filmes. Mesmo que as novas gerações não tenham vivenciado o terror, transparece nessas evidências o sentimento de como uma ditadura atinge a dignidade das instituições e o caráter das pessoas.

Inclusive depois do fato. É notório o episódio do deputado que dedicou seu voto na Câmara ao único torturador condenado pela Justiça. Baixíssimo clero, certo, mas prova da persistência do espectro de inferioridade humana legado pela ditadura. A continuidade de uma influência dessas na vida brasileira é um enigma moral.

Sentimento de existência é aquilo que permite vivenciar o interior das coisas, um espaço aberto de compreensão da história. Isso que a poesia filosófica chama de “um puro espaço diante de nós” (Rilke, “Oitava Elegia do Duíno”): além do geométrico, um espaço existencial, de recíproca transitividade entre o subjetivo e o objetivo. É outra forma de relação com o mundo, em que afeto se sobrepõe aos fatos da história. Às vezes, para o mal: o sentimento que fazia tremular a bandeira nazista ao lado da brasileira na sede do governo de Santa Catarina em 1934, ou que ali formou o maior partido nazista fora da Alemanha, foi, coisa triste, mais persistente do que efeitos de mudanças institucionais.

Nesse quadro perceptivo vem de novo a público a palavra anistia. Em 1979, varreu para baixo do tapete as atrocidades da ditadura, reforçada pelo crime de impedimento à verdade. Agora, seus descendentes tentam camuflar o que a nação inteira testemunhou pela TV, destruição e golpe escancarados. Nunca delinquentes produziram tantas provas contra si próprios, talvez embalados pela torta convicção de que amnésia seja sequência natural de crime, e punição um “constrangimento”. Até o presidente do Senado objeta: “não é assunto para brasileiros”. É que, no espaço aberto pelo sentimento de existência, o espírito nacional adverte que povo e memória ainda estão aqui.


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