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Pousado sobre a mesa do escritório onde eu espero a resolução da burocracia da vez, o jornal local de Chennai, onde estou, na Índia, chama-me a atenção.

O que para os locais certamente é notícia e informação, escrita em tâmil, para meu cérebro ocidental não passa de rabisquinhos redondos graciosos, interrompidos aqui e ali por pequenos traços curvos, como símbolos dançando no papel. É muito menos do que grego, porque não há uma única letra que eu reconheço.

Meu córtex cerebral já tinha visto isso antes e manda lembranças. Eram os rabisquinhos em espirais quase perfeitas que minha filha, lá pelos três anos de idade, fazia nos caderninhos que ela achava pela casa. Apertava firme no lápis, seguia com afinco e capricho as linhas do papel, e várias voltas da espiral mais tarde ela vinha mostrar: “Mamãe, lê aqui o que eu escrevi!”.

Dou-me conta de que o jornal em tâmil é para mim o que a escrita em português devia ser para minha filha aos três anos de idade. Afinal, ela nos via pegar cadernos e livros cheios de bolinhas e risquinhos e recitar sempre as mesmas palavras a cada página. Se “ler” era a operação mágica de transformar sequências de rabisquinhos em histórias para ela, então “escrever” deveria funcionar ao contrário, oras: basta fazer uns rabisquinhos e presto! Eis as palavras dela contando história para a mãe.

Claro que não funciona assim. O que torna rabisquinhos em escrita é a presença de um código subjacente, que dita a correspondência de rabisquinhos em sons, seguido de mais outro código, que define a correspondência de sons em significados.

O primeiro código, que pode se chamar tâmil, grego ou português, transforma os sinais da escrita –as letras– em fonemas e, portanto, contém informação, que é a associação pura e simples entre uma coisa e outra.

Meu cérebro sabe reconhecer as letras gregas mais usadas em notação matemática, e só: um rabisquinho em grego, um rabisquinho e som equivalente em português. Mas informação sozinha não faz nada acontecer.

O segundo código, sem o qual não há leitura, traz mais do que informação: agora é conhecimento, mesmo, sobre o que os conjuntos dos sons representados pelas letras obtêm na prática. Esse é um código de correspondência entre sons de um lado e ações e suas consequências de outro.

Ma-ma-ma é talvez o som produzido mais facilmente, e primeiro, por humanos imaturos (vulgo “bebês”), e tenho convicção de que essa é a explicação mais simples para mamãe, maman, momma e ama chamarem mães brasileiras, francesas, inglesas e indianas, seguidos de papai, papa e apa para chamarem os pais. Não são os bebês que aprendem “mamãe” e “papai”, são os adultos que aprendem a atender aos sons dos seus filhos, dando-lhes significado com sua atenção.

É coisa de altíssimo nível. Não é à toa que são precisos vários anos para um cérebro dominar o processo. De um lado, é a biologia que muda: juntar sons com rabiscos depende de neurônios que representam audição e visão passarem a se falar, o que leva alguns anos. De outro, é a experiência, adquirida ao longo de muita prática –portanto, tempo– que faz os circuitos do cérebro passarem a associar ações e acontecimentos com as palavras faladas e escritas que os representam.

Ler é uma habilidade severamente subestimada, como o jornal de Chennai me lembra.


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