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Osmar Teixeira Gaspar, brilhante intelectual que nos deixou durante a pandemia de Covid-19, dedicou parte de sua obra a examinar os dilemas da representação negra na televisão brasileira. Entre suas reflexões, destacava-se a análise sobre as concessões públicas de rádio e televisão, que, ao longo de décadas, têm sido dominadas por poucas famílias e amplamente ocupadas por grupos religiosos cristãos —alguns dos quais detêm não apenas programas mas canais inteiros transmitindo, 24 horas por dia, mensagens religiosas.

De outro lado, Gaspar observava em sua obra “Mídias: Concessão e Exclusão” que as religiões de matriz africana seguem excluídas de qualquer espaço institucionalizado onde pudessem expressar suas narrativas e tratar de suas questões. Como sabemos, líderes da religião, como mães e pais de santo, dependem de um convite esporádico em programas televisivos, subordinado à boa vontade de algum apresentador branco (sua obra também analisa a hegemonia branca nas telas, mas isso fica para outro texto).

O que nos interessa aqui é que, do ponto de vista constitucional, o Estado brasileiro é laico e, portanto, não pode se vincular a nenhum credo específico —evangélico, católico, espírita ou de outra natureza. A laicidade estatal, contudo, não implica indiferença ou omissão quanto ao direito fundamental de liberdade religiosa, que inclui não apenas o culto mas também a possibilidade de manifestação e expressão em igualdade material de condições.

Foi diante dessa violação à Constituição que o professor Gaspar manifestou sua perspicácia. Para ele, a ausência de espaço midiático para as religiões de matriz africana não é apenas uma afronta à liberdade de expressão e ao direito à comunicação —garantias constitucionais—, mas também um fator que reforça e perpetua a intolerância religiosa. Trata-se, em sua visão, de uma forma de violência simbólica permanente contra a população negra.

Ao permitir a hegemonia cristã nos meios de difusão e, mais ainda, ao permitir que discursos abertamente intolerantes sejam proferidos sem contraponto, o Estado não apenas se omite como contribui ativamente para o apagamento de parte significativa da identidade e da cultura do povo brasileiro.

Essa exclusão midiática, no entanto, não ocorre isoladamente. Gaspar destaca que essa violação de direitos é reflexo das dinâmicas estruturais do racismo no Brasil. A equação é simples: para acessar a televisão, é preciso dinheiro. A escravidão, que sustentou a economia do país durante quase quatro séculos, empobreceu e marginalizou a população negra e, no pós-Abolição, esse povo continuou privado de recursos, oportunidades e influência sobre os meios de comunicação. Assim, a ausência de representatividade nas grandes redes não é mero acaso, mas sintoma estrutural de um projeto excludente e persistente.

No entanto, mesmo diante desse cenário, a população negra segue resistindo —e uma de suas demonstrações de força pôde ser vista na semana passada, durante a maior festa do Brasil: o Carnaval, particularmente nos desfiles das escolas de samba, territórios negros por excelência.

Acompanhei a festa na Sapucaí e preciso expressar o orgulho que senti de ser uma mulher negra e de candomblé. Durante cinco dias —contando com os desfiles de São Paulo— ouvimos os nomes de Exu, Iansã, Logun Edé, Oxum e de tantos outros ressoarem na voz dos narradores da maior emissora do país.

Palavras em iorubá ecoaram, e os orixás se fizeram imensos nos carros alegóricos monumentais. Para contextualizar cada homenagem, narradores tiveram de explicar seus itãs, e essas histórias foram replicadas nos jornais ao longo dos dias.

No caso do Rio de Janeiro, a Quarta-Feira de Cinzas veio com o grito de campeã da Beija-Flor, que celebrou seus ancestrais e saudou Ogum e Xangô. Eu desfilei pela Portela, que emocionou ao homenagear Milton Nascimento, o Oxalá Preto Rei, anjo negro que brilhou na avenida e retorna com a escola para o desfile das campeãs neste final de semana.

Impulsionada pela “primavera candomblecista” das escolas de samba, cuja retomada do destaque para os orixás tem sido cada vez mais presente nos enredos, a televisão brasileira, durante esses cinco dias, se aproximou, ainda que por um instante, do que deveria ser seu compromisso permanente enquanto concessão pública: garantir um espaço onde todas as expressões culturais e religiosas do povo brasileiro tenham visibilidade e respeito.

Ao cumprir essa missão, o Carnaval nos mostra que, apesar das barreiras e ilegalidades, o povo negro brasileiro resiste com criatividade, perseverança e festa.

Seguimos para que essa luta ocupe todos os espaços que lhe pertencem por direito.


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