Em meio ao sucesso do programa Viver Sertanejo, capitaneado pelo cantor Daniel, a TV Globo decidiu por transformá-lo em fixo da grande das manhãs de domingo, após o Globo Rural. Conduzido com extrema qualidade, o programa obteve sucesso, mas segue um padrão comum na história da música sertaneja: louvar as matrizes caipiras do sertão.
De quebra, o programa conseguiu fazer as pazes da Globo com a música sertaneja. A relação andava meio estremecida desde que a TV carioca se posicionou firmemente contra Bolsonaro, enquanto parte considerável dos cantores sertanejos cavaram trincheira oposta.
A cada semana o apresentador recebe dois artistas ou duplas em sua casa. Mesmo nomes que abertamente apoiaram Bolsonaro em 2022, como Chitãozinho e o cantor Sergio Reis toparam adentrar a fazenda do boa-praça Daniel e prosear sobre a carreira e a vida. Entre tomar leite diretamente da vaca, cozinhar em fogão a lenha, pegar ovos no galinheiro e provar das iguarias do interior, repassam os marcos musicais da música sertaneja.
O Viver Sertanejo elevou a média de audiência da TV Globo no Rio de Janeiro, onde o programa marcou 12 pontos, três acima da média dos quatro domingos anteriores. Em São Paulo, marcou 11, um crescimento de quatro pontos.
Chama a atenção o esmero com o audiovisual. Sempre buscando os melhores enquadramentos e fotografias, a produção filma os artistas cantando sucessos quase sempre de forma informal e acústica, com poucos instrumentos. Algumas apresentações, pela qualidade da produção, poderiam ser lançadas comercialmente, caso interesse a emissora.
Diante de tanta qualidade, chama a atenção o fato de que a estética do programa é toda baseada no mundo rural. O sítio de Daniel é um grande espaço aberto, com muita paisagem, pastagens, currais e cenas campestres. A prosa às vezes força nos trejeitos regionais de forma a associar a música sertaneja aos valores caipiras.
Esse é um movimento que os músicos sertanejos fazem com frequência. Depois de pisar o pé no acelerador da modernização, sentem-se compelidos a dar alguns passos atrás e louvar a tradição. Especialmente quando uma geração que foi moderna no passado é ultrapassada, a forma de se manter legítima na seara da música rural é apelar à tradição, processo que chamo de “recaipirização”.
Chitãozinho & Xororó, por exemplo, fizeram este movimento quando, nos anos 1990, depois de mudar o curso da moderna música sertaneja, pisaram no freio e gravaram dois CDs intitulados “Grandes Clássicos Sertanejos”, nos quais passaram o pente fino na história da música rural, unindo caipiras e sertanejos num mesmo balaio, como se não houvesse tensões entre esses dois mundos.
Zezé Di Camargo & Luciano fizeram esse caminho quando tiveram sua trajetória contada em 2005 no filme “Dois Filhos de Francisco”. Ao contrário dos clipes da dupla, que a mostrava em cenários praianos, haras ricos ou até em Nova York e Tennessee americanos, o filme de Breno Silveira retratou-os como os simples camponeses que eles não mais eram. Como opção narrativa, a recaipirazação atua legitimando trajetórias modernizantes.
Os artistas da geração universitária também fizeram caminhos semelhantes. César Menotti & Fabiano já gravaram dois discos intitulados “Memórias” (2014 e 2017), além de outro chamado “Só as Antigas” (2020) e o disco “Modão dos Menotti” (2021), sempre cultuando canções do passado.
A “recaipirização” é um processo complexo. Em parte, envolve algo de distinção no meio sertanejo. Em parte ajuda na institucionalização cíclica do gênero. Tornou‑se cada vez mais prática comum entre sertanejos com algumas décadas de carreira renegar o grande sucesso e a banalização do gênero e defender uma suposta pureza perdida do passado.
Viver sertanejo insere-se nessa mesma linha de atrelar a música sertaneja, moderna e urbana, ao campo caipira. Reescreve a tradição construindo linearidades e apagando tensões. O jovem e moderno sertanejo de hoje é o velho e caipira de amanhã.
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