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A Folha abriu as comemorações do Dia da Mulher promovendo o artigo de um urologista sobre sua admiração pelas mulheres e a necessidade de “eliminar desigualdades de gênero”.

Por óbvio não se coloca aqui em questão a excelência, amplamente reconhecida, do profissional em sua área nem a qualidade de sua intenção, mas a escolha do jornal em destacá-lo quase sozinho —o que, se não o é, soa a provocação caricata. Em especial num momento em que sopram ventos contrários à ideia de promoção de uma igualdade que, por vias naturais, nunca chegou a se concretizar.

A surpresa foi a opção de dar menos ou nenhum espaço a colunistas mulheres que tratavam, na mesma edição, de preconceito e desigualdade, em favor da palavra de apoio masculina. Esta certamente é não apenas desejável mas também necessária. Não deixa de ser irônico, porém, escolhê-la como destaque em prejuízo de autoras que falavam dos mesmos temas.

Faz tempo que o jornal incorporou a cobertura de temas de gênero em seu dia a dia, portanto o mau passo na véspera do 8 de Março não deve representar um grande problema. O que o episódio talvez indique é que, como o resto do mundo, a Folha pode estar vulnerável à moda “antidiversidade” que emana dos EUA e dos fóruns sobretudo masculinos de uma direita extrema e chiliquenta.

É preciso cuidado. Mesmo antes disso, obituários reiteradamente mal editados já haviam feito estrago na maneira como o jornal retrata mulheres.

O caminho para o 8 de Março também não foi poupado da epidemia de feminicídios e de sua cobertura insuficiente. Os jornais registram com maior frequência esses crimes, mas não tem havido muita evolução na qualidade desses relatos. Não é raro que se limitem a repetir boletins policiais, sem história nem contexto.

O caso de Elaine Domenes de Castro, 53, é um deles. Ela foi morta a algumas quadras da Folha, na frente da casa onde morava com os filhos, no bairro dos Campos Elíseos, região central de São Paulo.

Foi o portal Metrópoles, porém, que contou melhor a história da morte de Elaine, que “era cozinheira e deixou três filhos, sendo o mais novo de 15 anos”. Segundo o site, “Elaine manteve um relacionamento de um ano com Rogério. Em 9 de setembro do ano passado, registrou um boletim afirmando que ele demonstrou ser muito ciumento, possessivo e que costumava acusá-la injustamente de ter outros relacionamentos amorosos”.

Já o G1 narrava o histórico do suspeito, contra quem o primeiro registro por agressão teria sido feito ainda em 1989. Sua ficha dizia bastante sobre a banalidade da agressão às mulheres no Brasil. De acordo com o G1, ele havia matado outra companheira em 2005. Foi preso em 2007, condenado a 12 anos de prisão em 2011 e recebeu o benefício do semiaberto no ano seguinte. Em 2015, estava no regime aberto.

Ana Carolina Pereira de Santana, Amanda Teixeira Araújo, Aline Cristina Giamogeschi, Maria Gabriella Nunes, Vanessa Ricarte, “jovens de 17 e 18 anos”… Essas foram outras vítimas cujos casos tiveram registro na Folha nos últimos 30 dias, mas o jornal não conseguiu contar direito a história de nenhuma dessas mulheres.

Na última semana, o caso em evidência foi o de Vitória Regina Sousa, de 17 anos, em Cajamar (SP). Não há nos relatos sobre ele nenhuma menção a feminicídio. Se a polícia não trata o crime como tal, seria importante explicar o motivo. O tipo de justiçamento a que a menina teria sido submetida, com ou sem participação de facções criminosas, parece evidenciar aspectos de gênero: “A adolescente morta foi encontrada sem roupas —apenas com um sutiã na altura do pescoço—, com o cabelo raspado e degolada”. O nível é do Talibã.

A questão aqui é como, do ponto de vista editorial, tratar esses casos em sua complexidade tanto como histórias pessoais quanto como sintomas reiterados de uma sociedade embebida em violência e em misoginia.

É frequente, ainda, a falta de destaque ao contexto de alta desses crimes. Nos dez anos da Lei do Feminicídio, é importante notar que, embora insuficiente para frear esse tipo de agressão, a iniciativa ao menos deu a ele um nome e uma estatística próprios. Recentemente, outra reformulação impôs penas ainda maiores. Mas o que os casos têm mostrado é que a lei, sozinha, não basta.

Se os números e os casos são assustadores, o baixo envolvimento e a baixa cobrança das autoridades também o são. Nos casos de São Paulo, a Folha tinha outro ponto importante de contexto subutilizado: uma reportagem recente sobre a falta crônica de verba para a secretaria estadual de políticas para a mulher, comandada por Valéria Bolsonaro na gestão Tarcísio de Freitas. Contar as histórias do feminicídio envolve também juntar essas peças.


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