Um dia após a cerimônia do Oscar, fui ao cinema assistir “Ainda Estou Aqui”, ganhador do prêmio de Melhor Filme Internacional. Preferi evitar sessões lotadas. Encheu mesmo assim.
Obra memorável que também se firma como retrato de família comovente, economizo no comentário. Já a respeito das centenas de pensamentos que vieram à mente quando esta, sensível diante da gigante tela, rendeu-se à história narrada, muito ainda poderia ser escrito.
Uma pergunta, destaco, repetiu-se solitária e insistente até se fazer ouvida pela consciência minha. Sem se perder no emaranhado de interrogações, indagou a lâmpada inapagável dentro da cabeça: e se a trama de golpe de Estado que atingiu seu ápice no dia 8 de janeiro de 2023 tivesse dado certo, qual impacto isso teria nas periferias e sua gente? Proponho um convite à reflexão olhando para um canto que, talvez, quase ninguém viu.
Na ditadura de 1964, os alvos, de cara, foram trabalhadores tanto do campo quanto das cidades —estes organizados em sindicatos—, além de ativistas estudantis, figuras políticas de oposição ao regime opressor, artistas, religiosos que operavam em favor dos direitos humanos, jornalistas e toda uma população pobre, negra e indígena, que mesmo não fazendo parte dos grupos mencionados, arcava com o aumento da violência policial e desigualdade social. Sim, nomes como o de Oswaldo Orlando da Costa e Carlos Marighella se originaram das camadas sociais mais vulneráveis, mas parte considerável da resistência à ditadura era composta por gente da classe média. Esta que, dada às suas constantes contradições, também apoiou massivamente o golpismo.
Hoje, penso, as frentes progressistas existentes no país ainda são identificadas com os grupos anteriormente citados, porém, com uma diferença: há quem as integre sendo pobre. Estudantes, artistas, pessoas de organizações autônomas espalhadas por quebradas, nas articulações intelectuais dentro e fora da academia, no jornalismo que vos escreve, nos partidos políticos há bem mais pessoas de periferia atuando ativamente do que nos anos de repressão em solo brasileiro —vide maior acesso a universidades, mundo do trabalho e informações via internet.
Consequentemente, num eventual golpe bem-sucedido, o processo de perseguição teria como facilitador o fato de que, por pobres serem, os recursos para se proteger de uma nova ditadura lhes faltariam em excesso —paradoxos da exclusão social. Alvos frágeis, alvos fáceis. As periferias sangrariam mais do que já sangram. Por esta razão —dentre todas as outras— que não se deve, inclusive na imprensa, tratar da tentativa de golpe como se fosse algo banal, cômico e parte de um surto coletivo momentâneo. Não foi.
Na nova ditadura, quem teria a chance de se exilar? Haveria “Veroca” no extremo Leste de São Paulo, enviada pela família a outro país no intuito de protegê-la da violência militarizada? No máximo “Eliana”, que ficou e sentiu o peso da mandíbula dos torturadores. Onde fica Londres para quem é da Sul? Com movimentos sociais repletos de quem não compõem só a classe média, mas as favelas, que indivíduo, na explosão das agressões, não lamentaria ao dizer —sem oportunidade de refúgio— “ainda estou aqui”?
O pobre sem exílio.
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