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O cinema é o melhor termômetro do nosso tempo. Em 1990, havia uma Julia Roberts nas ruas de Hollywood, captando a atenção de Richard Gere.

Roberts, no papel de prostituta, era contratada por Gere, no papel de milionário. Só para o acompanhar socialmente. O rapaz, coitado, não queria confusões sentimentais. Não preciso contar o resto, mas conto na mesma: em “Pretty Woman”, ambos se apaixonavam mutuamente e, apesar das diferenças sociais, acabavam juntos. O ano de 1990 permitia esses finais felizes e os lábios de Julia Roberts eram uma promessa de eternidade.

Passaram-se 35 anos. Em “Anora”, a garota de serviço também conhece um milionário. Mas as lágrimas de felicidade em “Pretty Woman” são agora lágrimas amargas e desamparadas em “Anora”. Cinderela não terá direito ao seu príncipe.

Eis, no fundo, a diferença entre o mundo unipolar de ontem e o mundo multipolar de hoje. Os conceitos, em rigor, descrevem a distribuição de poder no sistema internacional. Mas descrevem mais: a diferença entre a previsibilidade e o caos.

Em 1990, o mundo parecia previsível: a Guerra Fria acabara e as democracias liberais cantavam vitória. Francis Fukuyama, com insensato otimismo, afirmava até que a história tinha chegado ao fim.

A proposta liberal, bem vistas as coisas, tinha derrotado os seus inimigos históricos: o absolutismo, primeiro, o fascismo, depois, e finalmente o comunismo, com a queda do Muro de Berlim e a desagregação da União Soviética.

Sim, os fanatismos religiosos e algum nacionalismo ressentido continuariam a fazer cócegas, concedia Fukuyama. Mas o jihadismo islamita estava longe e não era exemplo para ninguém. Nem o jihadismo, nem o nacionalismo russo, que rapidamente se entregaria às virtudes do mercado livre (como a China, profetizava o nosso Francis).

Não aconteceu. O jihadismo, que se julgava longe, apareceu em Nova York numa manhã de setembro. O “fim da história” começou a rachar. A crise financeira de 2008, com epicentro na mesma cidade, deu outro golpe no otimismo liberal, ou talvez neoliberal.

Já sobre os russos, parece que o capitalismo não preencheu certas necessidades imperiais: a invasão da Crimeia, em 2014, e do leste da Ucrânia, em 2022, enterraram de vez o “fim da história”.

Donald Trump é apenas o coveiro de um cadáver que fedia. O mundo multipolar, com várias potências em competição, é o sonho por que muitos esperavam. Aí está ele. Pena que esse sonho não seja original.

O mundo já foi multipolar há mais de cem anos. Na virada do século 19 para o 20, a Alemanha e a Inglaterra, a França e a Rússia, todas levavam a peito a lição bastarda do darwinismo bastardo: as nações são organismos vivos na luta pela sobrevivência.

E como manter esses organismos vivos?

Pela conquista territorial, claro, e pela supremacia militar. Essa história, se bem me lembro, também não teve um final feliz.

Será diferente agora, com os Estados Unidos, a China e a Rússia a reclamarem as suas “zonas de influência” nas Américas, no Pacífico e na Europa, respectivamente?

Aliás, para facilitar as coisas, retiremos a Rússia, uma potência de segunda categoria, do campeonato dos grandes. Até que ponto os Estados Unidos e a China estão condenados à “armadilha de Tucídides” de que falava o historiador Graham Allison?

Na Guerra do Peloponeso, Tucídides explicava o conflito entre Atenas e Esparta pelo fato de os espartanos terem sentido temor com a ascensão econômica, militar e política dos atenienses. A guerra foi inevitável.

Historicamente, argumentava Graham Allison, foi quase sempre assim quando uma potência dominante se sentiu ameaçada por uma potência emergente.

Na Guerra dos Cem Anos, a Inglaterra tentou destronar a França. Nas guerras napoleônicas, Bonaparte tentou destronar a Inglaterra. Na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha imperial tentou destronar a Inglaterra e a França. Na Segunda Guerra Mundial, novamente a Alemanha e novamente a Inglaterra e a França.

Haverá uma cláusula de exceção para os Estados Unidos e para a China? Ou a “armadilha de Tucídides” também aguarda por esses dois mamutes?

O século 21 será definido pela resposta a essa pergunta.

Eu, mais modestamente, sinto uma vontade nostálgica de ficar na última década do século 20, quando o mundo unipolar oferecia Julia Roberts às massas.

Aquele riso insolente. Aqueles cabelos longos, ruivos, revoltos. Aquela promessa kitsch, porém calorosa, de que tudo era possível, mesmo o impossível.

Parafraseando Proust, deixemos o realismo feio dos nossos dias para os homens sem imaginação.