De cara, poderíamos dizer que ambos odiariam esse título. O atual presidente da Argentina, Javier Milei, construiu durante a campanha a figura de um outsider, disposto a varrer tudo o que a velha política ou —como ele prefere dizer, a casta— havia significado para o país.
Também renovou o slogan “que se vayan todos” (que todos vão embora) gritado nas ruas de Buenos Aires durante os piquetes de 2001/2002 que paralisaram o país e obrigaram o então presidente, Fernando de la Rúa, a fugir de helicóptero da Casa Rosada, enquanto a repressão comia solta na praça de Maio.
Cristina Kirchner tampouco se sentiria bem ao ser comparada a Milei, o radical de ultradireita que surgiu catapultado pelo sentimento de raiva contra ela, vindo das periferias e amplificado pelas redes sociais, onde o mileísmo fez sua plataforma baseada numa articulada e mentirosa política de desinformação.
Ela responderia, corretamente, que os Kirchner pertencem a uma corrente política tradicional, o peronismo, que pode ser polêmica e cheia de nuances, mas até aqui tem sido a única —e isso é fato— a estabelecer canais duradouros com as periferias do país, com suas promessas de mais justiça social muitas vezes alcançadas sob custo de dívidas e calotes.
Se há algo que não se pode dizer na Argentina é que o peronismo tenha dificuldade para chegar aos mais pobres. Mais do que isso, são os únicos que de fato os acompanham, ainda que as consequências econômicas depois sejam custosas.
Por que ambas as correntes se parecem tanto?
O paralelo mais chamativo é o fato de ambos atacarem com veemência os meios de comunicação tradicionais. Tanto o mileísmo —com seu exército de trolls e sua estratégia de comunicação armada por Santiago Caputo, o Rasputin do governo— quanto Cristina odeiam esses meios tradicionais e preferem conversar diretamente com seus eleitores, por meio das redes ou dos encontros cara a cara. Ambos adoram comícios, atos e o clima de uma eterna campanha.
Lá Fora
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Durante a gestão Cristina, aprovou-se a Lei de Meios, obrigando os principais monopólios da mídia, como o Grupo Clarín ou o Grupo La Nación, a desfazerem-se de alguns de seus negócios. Ao final, tudo ficou num elas por elas, uma vez que estes foram passados a grupos ou empresários amigos. Cristina, numa medida altamente populista, nacionalizou o futebol nacional, levando-o à TV pública, grátis —e entusiasmando os eleitores.
O que Milei tem de parecido nessa seara é o fato de expressar um profundo desrespeito pela atividade jornalística. Tendo como base de apoio jovens que catapultaram sua candidatura “contra tudo o que está aí”, principalmente via internet e durante a pandemia, Milei, assim como Cristina, aposta numa democracia direta, sem intermediários.
São influencers e blogueiros que têm acesso aos bastidores de seus discursos, que falam com seus ministros. Um jornalista independente ali fica perdido entre pedidos de suborno ou o receio de ser achincalhado no processo de pedir uma entrevista ao presidente.
Neste fim de semana, quando começam as jornadas do novo ano legislativo, Milei e Cristina voltam a se parecer. Como a peronista, Milei lança decretos sobre diferentes temas, sem esperar as discussões no Congresso, criando animosidades entre os Poderes. As advertências a parlamentares são realizadas com palavras chulas e desqualificações, assim como no kirchnerismo.
O verdadeiro desafio de Milei está apenas começando. Para manter-se coerente com seu discurso, deveria começar por diferenciar-se de seus antecessores.
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