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Na noite da última quinta, a Folha colocou no ar uma reportagem com o título “Dino pressionou Congresso por acordo ao citar mais de 80 inquéritos no STF sobre emendas”. O verbo escolhido pelo jornal, “pressionou”, gerou queixas de leitores. E eles têm razão na observação.

O texto da reportagem, com quase mil palavras e mais de 6.000 caracteres, em nenhum momento usa “pressão” ou o verbo “pressionar” para descrever a ação do ministro do STF Flávio Dino. Pelo contrário, cita as comemorações de Hugo Motta e Davi Alcolumbre em relação ao acordo com o STF.

Uma passagem em especial deixa mais claro o deslocamento do “pressionou”. “Em outro momento mais tenso, Dino —que já foi deputado, senador, governador e ministro de Estado— destacou que entende o lado deles [congressistas] e que já foi da política, mas que hoje é juiz. E acrescentou que, enquanto receber denúncias, abrirá inquéritos e não vai prevaricar.”

Se esse foi o ponto mais tenso do encontro dos ministros do STF com os parlamentares, fica ainda mais difícil defender a escolha feita pelo jornal para descrever a ação do ministro. No Globo, a repórter Naira Trindade relatou que a reunião que ajudou a destravar as emendas “teve climão, mas também momentos descontraídos, a começar quando um ministro avisou que o sistema precisava de regras ‘porque até puteiro tem regras’”.

Menos rico em detalhes, o texto da Folha não apresentava as evidências que seu título sugeria. Apesar disso, o jornal escolheu promovê-lo com destaque.

Parte do leitorado percebeu a inconsistência e especulou se o jornal estaria empenhado em provocar mais tensão entre Congresso e Supremo. É pouco provável. Mas o episódio mostra como a escolha equivocada de termos rebaixa o bom jornalismo crítico a um tom de implicância.

Pode ser só mais um deslize, e deslizes acontecem. Mas começa a soar a desgaste quando ocorre tão pouco tempo depois do “Ameaça de Moraes a Cid abre brecha para contestar delação que implicou Bolsonaro”, em que os especialistas ouvidos pelo jornal contradiziam o próprio enunciado.

É preciso apresentar mais embasamento a quem lê os (e ainda confia nos) textos do jornal.

PRESSÃO BAIXA NAS CRECHES

Em outra frente, ao divulgar os dados do Censo, a Folha optou por uma formulação que fica aquém da gravidade do problema das creches: “Apenas 646 municípios do país têm mais da metade das crianças de 0 a 3 anos em creche”. Também, como a concorrência, preteriu o tema em favor do destaque para os dados sobre ensino superior.

Os 646 municípios sem a dimensão total deles não dizem tanta coisa, o que torna o título pouco eficiente. O jornal parece empurrar a equação para o leitor resolver: 646 (de quantos?) atendem mais da metade das crianças. Isso é muito ou pouco? O texto se empenha em explicar e junta a esse o dado percentual geral de crianças atendidas no país (33,9%) —que, afinal de contas, não parece tão ruim se considerado historicamente. Mas o que o número esconde?

A reportagem dá uma pista: “O Brasil tinha como meta ter 50% da população dessa faixa etária na educação infantil até 2024. Apesar de ter avançado nos últimos 22 anos, o país segue longe de alcançar a marca”. No ritmo atual, quando o Brasil conseguiria alcançar a meta de 2024? (O ChatGPT responde, 2037, mas seria bom que a Folha respondesse antes de o leitor resolver recorrer a um robô.) De todo modo, o relato expõe ponto a ponto os problemas apresentados na pesquisa, embora não se aprofunde neles.

Mas o destaque que o jornal (os jornais, porque a concorrência não foi muito melhor nesse caso) escolhe dar ao tema, tratado como secundário, evidencia parte importante do atoleiro brasileiro. A falta de creche vira apenas um apêndice no material geral do Censo, quando poderia dizer tanto ao país sobre ele mesmo.

O fato de o Brasil estar deixando ir pelo ralo seu bônus demográfico tem muito a ver com a negligência na educação infantil. E essa etapa tende a ser menos prioridade ainda num país que já envelhece com rapidez. A própria Folha informa que “1.972 municípios não possuem plano de expansão de vagas. Desses, 21% afirmam não ter o planejamento por entenderem não haver necessidade”.

Talvez o jornalismo também entenda não haver necessidade de valorizar dados e políticas públicas sobre creches no Brasil. Sem isso, o tema continuará a ser tratado em espasmos.


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