Estou acostumado à diversidade dos evangélicos, mas fiquei sem palavras ao acompanhar o show de uma banda portuguesa de inspiração pós-punk liderada por dois pastores quarentões. Essa apresentação ocorreu na semana passada como parte da celebração dos 25 anos do selo Flor Caveira, em São Paulo.
O show aconteceu no Porão da Cerveja, um bar na Barra Funda que parece um templo punk: páginas de fanzines e animes decoram as paredes pretas. Cerveja, claro, lanches veganos no cardápio, pessoas tatuadas e cheiro de maconha no ar.
No setlist da banda, referências ao grupo punk paulista Ratos do Porão, ao filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, a Caetano Veloso e a salmos bíblicos. Apesar dessa mistura, a música não soa forçada ou pretensiosa nem tenta “passar mensagem”. Os músicos se divertem (jubilam?) até mais do que a plateia.
Flor Caveira é um selo musical criado nos anos 2000 por um grupo de amigos da mesma igreja batista no subúrbio de Lisboa. Dez anos antes, eram adolescentes que ensaiavam rock de garagem na igreja.
Fracassaram no projeto de alcançar sucesso comercial, mas perseveraram na música.
O som das bandas ligadas ao selo Flor Caveira não é exatamente cristão. A religião aparece na mistura, junto com a influência de artistas como Bob Dylan, Johnny Cash e Sex Pistols. Pode parecer algo incompatível, como água e óleo, mas para eles uma coisa e outra vêm de Deus e expressam Sua beleza.
No centro desse movimento está Tiago Cavaco. Pastor batista, escritor e músico, ele já foi descrito como um “Woody Allen evangélico”. Entendo a associação –a magreza de ambos, o envolvimento com a arte e a inquietação intelectual–, mas essa imagem é insuficiente.
Cavaco conduz cultos de terno e gravata na Igreja Batista da Lapa, em Lisboa. Ele não leva uma vida dupla, mas no campo evangélico é reconhecido como um pastor tradicional e conservador. Em seu livro “Férias de Fornicação e Outras Murmurações de um Moralista”, por exemplo, dispara contra “teenagers abastados, saídos dos seus colégios católicos, conduzindo o automóvel do papai para se deitarem com quem lhes apeteça”.
Além do show no Porão da Cerveja, o aniversário da Flor Caveira proporcionou outro evento, este sim evangelizante, voltado para jovens, na Igreja Batista do Povo, na Vila Mariana, com a presença de pastores famosos.
O Brasil é, assim como a península Ibérica, um território de encontros de povos. Mas o evangelismo à brasileira vem especialmente das igrejas americanas e busca permanecer em uma bolha blindada. Existe aquilo que é “de Deus” e o que é “do mundo”. Então, o consumo de arte e cultura costuma ser policiado e restrito a fontes autorizadas.
Por isso saúdo com entusiasmo o tropicalismo da Flor Caveira: sua despreocupação com o sucesso comercial, seu desinteresse em usar a música como meio para converter. Sobretudo, celebro sua coragem de criticar a estética gospel como ingênua, artisticamente pobre e culturalmente submissa às tradições evangélicas dos Estados Unidos.
Vale conferir as playlists no Spotify.
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