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O DNA de pessoas que viveram há 2.000 anos no atual Reino Unido sugere que os povos celtas da região tinham uma estrutura social que se organizava em torno das mulheres de cada grupo. Ao contrário da maioria das sociedades conhecidas, elas não saíam do local de origem de suas mães: os homens é que iam ficar com a família das mulheres quando se casavam com elas.

Os resultados, publicados na última quarta-feira (15) na revista científica Nature, trazem mais peso à ideia de que, entre os celtas (povos que falavam idiomas de um mesmo grupo linguístico, presentes principalmente na Europa Central e Ocidental), o prestígio social e político das mulheres podia ser mais elevado do que entre os demais europeus pré-modernos.

Os dados mais contundentes do novo estudo vêm do vilarejo de Winterborne Kingston, na região de Dorset (sudoeste da Inglaterra). Nesse lugar e em áreas vizinhas foi encontrado um total de 57 esqueletos, quase todos sepultados mais ou menos entre 100 a.C. e 100 d.C.

Segundo relatos de escritores da Antiguidade, os defuntos pertenciam à tribo dos durotriges. Esse antigo povo céltico facilitou a vida dos arqueólogos do futuro porque, diferentemente da maioria de seus conterrâneos na época, costumava enterrar seus mortos inteiros, em vez de cremá-los ou fazer outras modificações nos corpos.

Com isso, a extração de DNA de seus restos mortais se tornou mais viável. E o que o processo revelou, segundo a equipe liderada por Lana Cassidy, do Trinity College de Dublin (Irlanda), foi uma população fortemente matrilocal, para usar o jargão dos antropólogos.

Esse padrão, presente em épocas mais recentes em algumas populações da África ao sul da Saara, por exemplo, difere do sistema patrilocal, considerado o mais típico da nossa espécie. Numa sociedade patrilocal, a mulher casada passa a ser considerada parte do grupo familiar do marido (ao menos formalmente, é o que acontece até hoje quando, após o casamento, a mulher adota o sobrenome do marido). E o mesmo vale para os filhos do casal.

Já as culturas matrilocais invertem essa lógica: maridos passam a integrar as unidades familiares das mulheres, e os filhos são considerados membros da linhagem da mãe, e não da do pai.

É possível detectar padrões desse tipo por meio do genoma levando em conta dois tipos diferentes de herança genética. De um lado, há o chamado mtDNA ou DNA mitocondrial, presente apenas nas mitocôndrias, estruturas que produzem energia para as células. Em geral, o mtDNA só é passado de mãe para filho ou filha (na geração seguinte, apenas a filha transmitirá a mesma variante de mtDNA para seus rebentos).

Já do lado paterno da equação há o cromossomo Y, cuja presença, na maior parte dos casos, leva o indivíduo a se desenvolver como membro do sexo masculino. Nesse caso, o cromossomo Y costuma ser transmitido apenas de pai para filho homem.

Ocorre que, entre os antigos celtas do lugarejo de Winterborne Kingston, nada menos que metade das pessoas carrega um único tipo de mtDNA muito específico. Trata-se do chamado haplogrupo U5b1, que é bastante raro —apenas 3 em cada 100 mil pessoas analisadas hoje o carregam, e é a primeira vez que ele aparece em contextos arqueológicos.

Ao mesmo tempo, porém, a diversidade do cromossomo Y no mesmo local é alta, o que indica a presença de homens descendentes de famílias bem diferentes entre si. E o resto do genoma dos antigos moradores também não mostra sinais de casamentos entre parentes. Essas peças, quando montadas juntas, sugerem que se tratava de uma população em que muitas gerações de mulheres aparentadas ficavam no lugar, mas sempre se casavam com homens vindos de fora.

O mais interessante é que não parece se tratar de um caso único. A equipe fez um pente-fino em dados genômicos já publicados sobre outros sítios arqueológicos da Europa (156, no total). A ideia era achar outros locais em que o padrão contrastante entre mtDNA e cromossomo Y aparecia. Resultado: os 11 casos que mais destoam do padrão patrilocal são todos britânicos e correspondem à Idade do Ferro, mesmo período de Winterborne Kingston (com exceção de um, mais antigo, da Idade do Bronze).

A grande questão, claro, é saber como e por que a prática da matrilocalidade se desenvolveu entre os celtas britânicos.

Um estudo recente com grupos celtas do continente, no sudoeste da atual Alemanha, mostrou sinais de relações dinásticas entre nobres pelo lado materno. Já relatos de Júlio César, general e político romano que tentou conquistar os territórios britânicos no século 1º a.C., menciona o fato de que mulheres da região podiam ter mais de um marido, e outros textos da época do Império Romano falam de rainhas poderosas entre os bretões. O tema chegou a ser explorado até por romances de fantasia, como a série “As Brumas de Avalon”.

Para Lara Cassidy, ainda é cedo para dizer se o costume foi importado dos celtas do continente ou surgiu na ilha.

“Sem dados genéticos apropriados do continente, não temos como saber. Algumas sociedades podem fazer a transição para a matrilocalidade de forma independente por muitas razões diferentes, incluindo padrões de guerra [quando maridos passam muito tempo longe de casa lutando, por exemplo]. Temos de aguardar a chegada de mais dados da França e de outras regiões célticas”, analisa ela.