A saudação nazista que o bilionário sul-africano Elon Musk fez no palco – e repetiu, para o caso de alguém não ter entendido –, na cerimônia de posse de Donald Trump, na segunda-feira (20), é um fato. Ponto.
Musk queria que todos a vissem, e todos a vimos. No mundo dos adultos racionais, não cabe discussão quanto a isso. Ocorre que o mundo dos adultos racionais tem respondido por fração cada vez menor do ambiente cacofônico das redes sociais, para onde migrou a conversa pública nos últimos anos.
É assim que o “Heil Hitler” cristalino se torna um signo turvo, um pântano semiótico – arma de trollagem, má-fé e caos, campos em que a extrema direita mundial vem atuando com maestria notável, contra adversários praticamente impotentes.
Vigoroso, desabusado e cheio de orgulho por repor na esfera dos gestos políticos “aceitáveis”, diante de uma audiência planetária, uma saudação infame resgatada no fundo mais podre do lixão moral da humanidade, o braço estendido do dono do X cumpre função dupla.
De um lado acena para o submundo cada vez mais saidinho onde rastejam neonazistas, supremacistas brancos e outros cultores de ideias políticas criminosas, dando-lhes aval e incentivo. Do outro, busca confundir quem se chocou com o que viu, negando ser o que evidentemente é.
Deve-se reconhecer que há algo de genial numa manobra que vence quando se afirma, energizando aliados, e volta a vencer quando se nega, confundindo adversários ou colando neles a pecha de histéricos delirantes.
O nome dessa segunda parte da manobra – mais usado no campo das relações sentimentais, mas indispensável para a compreensão do cenário político contemporâneo – é gaslighting.
“Iluminação a gás” em tradução literal, gaslighting entrou há cerca de meio século para o vocabulário da psicologia criminal como nome do abuso psicológico em que se distorcem fatos para levar a vítima a duvidar dos próprios sentidos e da própria sanidade.
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A explicação do nome está num filme de 1944, “Gaslight”, chamado no Brasil de “À Meia-luz”, em que um homem (Charles Boyer) tenta convencer a esposa (Ingrid Bergman) de que são fruto da imaginação doentia dela as bruscas oscilações de luz da casa.
O mais preocupante é que a aposta da nova extrema direita na desonestidade e no gaslighting como substitutos do debate democrático de ideias conta, agora oficialmente, com os dados viciados dos algoritmos controlados pelo mesmo neonazista que fez o gesto ignóbil – e pelos colegas dele.
Diante desse quadro distopicíssimo, talvez não fosse muito o que a mídia tradicional pudesse fazer. O fato é que nem isso está fazendo. Chamar as coisas pelo nome correto é um princípio jornalístico fundamental que já vinha se afogando há alguns anos em pusilanimidade.
Em vez de olhar para um gesto nazista e chamá-lo de gesto nazista, deixando para o embate de opiniões o que fazer desse fato, o jornalismo atual tem preferido abdicar de sua responsabilidade no plano factual, dispensando o mesmo espaço a quem acha isso, a quem acha o oposto disso e a quem não acha coisa alguma.
Vão ser longos quatro anos.
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