Eu tento argumentar dizendo que sou mulher e, portanto, ainda vista como minoria. Mas ele bafora nos óculos e os limpa na camisa de linho soltinha: “Mas você é branca e o sofrimento de um branco não importa mais, não “viaja bem” pra fora do país. Além do quê, por causa desse negócio de livro autobiográfico, uma hora você vai acabar sendo processada”.
O que eu vivi pertence a mim. E o escritor que renuncia a isso não tem nada. Acho estranho que ele trabalhe com livros e não defenda isso. Ficamos um tempo olhando para nossos celulares, na falta de ideias para o livro e de assunto para o almoço. De repente ele retoma, excitadíssimo: “E se você ‘enfiar’ no material que já tem uma personagem periférica que te ensina o sentido da vida?”.
Como dorme o escritor que planeja ser relevante para prêmios e expectativas do mercado em vez de escrever porque precisa tirar aquilo do seu duodeno? Fora que não me interessa fazer um livro que pegue bem. Eu quero pegar mal. A literatura que me interessa é a que pega mal.
O editor pergunta se sofri recentemente algum assédio “interessante”. Talvez ele ache que se eu for pelada para um beco escuro minhas chances de ser finalista de um Oceanos aumente bastante.
Nos dedicamos a dobrar alfaces bem temperados por balsâmicos trufados quando lembro que posso ser assediadora, tanto moral quanto sexual, e talvez aí tenhamos uma história original. O editor limpa a testa suada em um guardanapo todo cagado de azeite. Ele está exausto da minha incapacidade em fazer um mísero livro que caiba no que se espera de um livro hoje em dia.
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Marco reuniões sábado final do dia e não disfarço reviradas de olhos escancaradas para jovens lentos. Também dei em cima de 80% das pessoas que trabalharam comigo. Sendo elas homens ou mulheres ou gays ou fluidas. Estando eu casada, solteira, com Covid ou infecção urinária.
Ele lamenta eu não ser mãe solo, “se bem que eu acho que funcionaria melhor se você fosse uma mãe solo preta ou indígena”. Digo que eu só gostei da Amazônia porque estava em um hotel 5 estrelas e que não faz sentido usar os indígenas para ser uma escritora branca com um livro “que viaja bem”. Pergunto a ele se esse tipo de literatura oportunista, tão cometida atualmente, não é justamente uma forma de racismo.
O editor pede a conta e, ato contínuo, segura de leve meu queixo: “Uma branca sofrendo por amor não vai dar certo, neném”. Na vida talvez eu o exponha em coluna, mas no sexo, gostaria que fôssemos agora para algum lugar que ele pudesse me impor suas regras e me bater de leve com seus livros do Darcy Ribeiro e do Max Weber.
“Talvez, se você tivesse vencido um câncer, poderia, sendo branca, ter um livro em primeira pessoa minimamente respeitado.” Digo que anualmente investigo pólipos, manchas, cistos nos seios, cistos nos ovários, um tumor no osso externo. Mas até agora nada maligno, infelizmente.
Antes de o editor partir, ele diz que preciso me reinventar como escritora. Ele é só um homem, mas me aproximo do seu rosto, cotovelo ralando de leve ali, e digo em seu ouvido: “Jamais, neném”.
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