Que se note: não estou aqui a tratar com menoscabo ou desdém o código da política. Não no país que manteve Lula 580 dias na cadeia, condenado sem provas por um juiz incompetente e suspeito. Não num Brasil em que um fanfarrão truculento passou quatro anos articulando um golpe de Estado, com os desdobramentos conhecidos. Não no momento em que assistimos à recondução de Donald Trump à Presidência dos EUA. Uma de suas ordens executivas, por exemplo, autoriza a caçar mulheres e crianças imigrantes em escolas e igrejas. Uma outra libertou líderes fascistas que comandaram a invasão do Capitólio. Nunca foi tão importante fazer política, falar de política e articular a política para intervir nas esferas do poder.
Não tenho especial simpatia pelo discurso catastrofista porque, em certa medida, em qualquer situação, parece-me sempre mais fácil, e até intelectualmente mais seguro, ser pessimista. Tudo dando errado, resta o “eu disse…” Se a coisa se sair pelo melhor, de acordo com o melhor mundo possível, poucos se lembrarão de antevisões dantescas. Assim, mesmo refratário ao pessimismo, tenho de admitir: vivemos dias perigosos. Como é que a gente faz para ser Eunice Paiva na vida? Não desistir, não se deixar consumir pela dor, agarrar-se à vida — que foi roubada do seu marido — com paixão e método e fazer história. É preciso regar nosso jardim
Já assisti a alguns dos trabalhos que concorrem com “Ainda Estou Aqui” nas categorias “Melhor Filme” e “Melhor Filme em Língua Estrangeira”. Não se fez uma concessão ao filme de Salles por condescendência com aquele povo longínquo e ignoto. Não! Trata-se de cinema no que este pode ter de melhor em rigor estético e em apuro técnico. Receber a distinção seria um alumbramento, mas nunca uma desproporção
FERNANDA TORRES
Fernanda Torres atingiu o estado da arte da representação. Quando ela está em cena, Salles executa um diálogo de câmeras notável. Tanto assistimos àquilo que Eunice vê — também é uma narradora — como vemos a personagem sendo vista por um olhar externo. Há uma habilidosa intercalação de imagens na primeira e na terceira pessoas. Trata-se de um exercício difícil, que pode se perder em maneirismos. Ocorre que deu formidavelmente certo. Ali estava uma atriz no domínio pleno do seu ofício.
Observo acima que o filme é profundamente político sem ser panfletário — lembrando, não obstante, que, às vezes, no ambiente adequado, é preciso, sim, apelar à força de um panfleto, de um “J’accuse”. Também a atuação de Fernanda, para empregar uma expressão de Mussil, é “magra e severa”. Ela expressa na face e no corpo a resiliência austera de Eunice: contida, determinada e econômica.
E que se note adicionalmente: que ator raro é, de fato, Selton Mello! Lembrem-se: a obra nasce do olhar do menino e das memórias do adulto Marcelo Paiva, o filho de Rubens. Em mais uma combinação perfeita entre diretor e ator, a interpretação de Selton vira uma espécie de plano de fundo, mais lento e estável, em contraste com a agitação do primeiro plano, na boca da cena. Olhares, risos, afetos, a presença terna e segura do pai… Até o desaparecimento. E aí Salles constrói outra personagem fundamental do filme: a ausência.