Nunca ninguém viu isso: meio milhão de estropiados à luz dourada da manhã, caminhando numa estrada precária; uma caravana de gente exausta e de passo apressado; mulheres cobertas de pó com crianças no colo; moços levando velhas esquálidas em cadeiras de roda.
Todos, absolutamente todos, carregam sacolas, malas, sacos, mochilas, até um colchão na cabeça. Um burrico puxa a carroça abarrotada; um adolescente empurra outra. Embora o sofrimento esteja inscrito nos rostos, alguns sorriem, parecem aliviados.
Não pense no futuro desses 500 mil molambentos. Esqueça que viverão em ruas onde não há casas, escolas, lojas, clínicas. Os deslocados na marra morarão em tendas. Também deixe de lado o passado, os 15 meses em que Israel calcinou a Faixa de Gaza e matou 47 mil.
Fixe-se no presente, na via-crúcis. Nunca, desde que descemos da árvore, tantos viram imagens tão assombrosas. E não houve quem as lamentasse. Pastores, padres e rabinos se calaram. Intelectuais emudeceram. Vladimir Putin, Donald Trump, o papa Francisco, Xi Jinping, Lula: silêncio.
O cortejo foi tragado pelo torvelinho de cenas que, no celular ou no laptop, as retinas não retêm. São figuras como as de Bruegel, provas vivas de que a marcha do meio milhão retoma os massacres de há meio milênio.
Pieter Bruegel, o Velho, foi um pintor flamengo do século 16, dos anos em que o duelo de católicos e protestantes coexistiu, nos Países Baixos, com a luta pela independência. Sua obra anteviu algumas das vítimas de Gaza: elas estão entre os atônitos de “A Procissão do Calvário”; nas acabrunhadas de “O Massacre dos Inocentes”; nos soldados de “O Suicídio de Saul”.
Bruegel pintou o povo. Seus quadros estão apinhados de crianças, homens e mulheres miniaturizadas, camponeses que se fartam de comer e dançar, que riem, ralam, se embebedam, padecem.
É um povo de seres palpáveis, sensíveis. Exemplo: o tiozinho de “O Massacre dos Inocentes” que suplica a um soldado que poupe sua rês. As divindades são diluídas. Exemplo: Jesus em “A Procissão do Calvário”, diminuído e dissolvido no centro da tela.
A televisão pôs no ar reportagens com procedimentos parecidos. Numa delas, a panorâmica dos palestinos em movimento lembra uma procissão que se arrasta que nem cobra pelo chão, até que o travelling da câmera no chão contorna dois rapazes que se abraçam em prantos, de joelhos.
Por minutos doloridos, vê-se o reencontro de Ibrahim e Mahmoud Al-Attout, irmãos gêmeos que a guerra separou por um ano. Eles se agarram, soluçam, gritam a saudade que sentiram, não se largam, e então um deles beija o solo. A guerra se faz assim, com desamparo e lágrimas, não tem nada de heroico.
As dores são provocadas por cavalheiros bem-postos na vida, fidalgos como Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, o duque de Alba. A serviço de Felipe 2º, o Prudente, ele chegou a Bruxelas, em agosto de 1567. Sua missão era debelar os motins calvinistas que grassavam pela possessão espanhola.
Alba cumpriu a ordem à risca. Estima-se que mandou matar 18 mil holandeses; fez jus ao título de o militar mais cruel de seu tempo, quase um Binyamin Netanyahu a serviço da Casa Branca. Os espanhóis devem ao duque a fama de duros e arrogantes que gozam até hoje nos Países Baixos.
Segundo T.J. Clark, historiador da arte inglês, Bruegel pintou um quadro que seria uma resposta resignada ao carniceiro de Filipe 2º —”A Terra de Cocanha”. Ele marcaria uma guinada na sua arte, que deixaria de denunciar a violência e a opressão, como fez em “O Triunfo da Morte”.
“A Terra de Cocanha” exibe três homens largados no chão, estuporados de tanto comer. Estão no país mítico que, na Idade Média, equivalia a Atlântida e Eldorado: Cocanha. Bruegel não o considera uma utopia, ao contrário: como há comida em abundância, ninguém trabalha ou faz algo útil; ali a vida não vale a pena.
Segundo a tela, o ser humano é indolente, glutão, não se importa com nada e ninguém. Logo, é bobagem denunciar a injustiça, querer melhorar o homem. O certo é ser indiferente.
Bruegel também exalta a passividade em “A Queda de Ícaro”. O herói acerca-se do Sol, a cola que segura suas asas derrete e ele cai no mar, mas ninguém liga para o “splash!” provocado pela queda. Indiferente, o navio que passa segue viagem —que cada um cuide de si e Ícaro se dane.
O Bruegel da segunda fase, o indiferente ao sofrimento alheio, também ressurgiu em Gaza. Ele se materializou no quese-dane geral, no silêncio que acompanhou a procissão dos palestinos rumo a ruínas.
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