Tinha tudo para dar errado. E deu. Cada movimento preparatório denotava equívoco e má-fé. De onde nada se esperava além de truculência, truculência. Um shake do STF no seu pior. Um mini-curso dos vícios monocráticos que fragilizam um tribunal importante demais para o país. Tribunal que hoje não aceita dizer o que faz nem fazer o que diz.
A câmara de conciliação sobre direitos territoriais indígenas, criada pelo gabinete de Gilmar Mendes sem lei que o autorizasse, chegou a um resultado: anteprojeto de lei para “pacificar” o conflito. Pacificar, veja bem, ao estilo brasileiro.
O erro estava na ideia, na instauração, na arquitetura, na condução, nos bastidores da promiscuidade. Está no produto final.
Na ideia porque o conceito de direitos fundamentais não se sujeita a conciliação e serve basicamente para uma coisa: impedir transação ou venda da sua dignidade e liberdade. Na instauração porque não há norma que dê institucionalidade à câmara. Na arquitetura porque forjou sub-representação de indígenas, convidados a sentar à mesa com atores que lutam pela extinção de terra indígena. Na condução pela violência simbólica e grosseria verbal no tratamento. Nos bastidores se viu ministro do STF em eventos patrocinados, por exemplo, pelo Ibram, o instituto da mineração. Advocacia lobista circulando.
Tribunal anunciou conciliação, entregou coerção.
Mas o resultado foi mais grave. O anteprojeto altera rito demarcatório do decreto 1.775 e dá larga margem a objeções de terceiros. Amplia papel de estados e municípios e impõe novos obstáculos à demarcação. Prevê, sem maiores critérios, “compensação territorial” quando desocupação for “impossível”. Exige indenização da terra nua para posseiros e favorece o agronegócio.
Pior: permite atividade econômica e exploração mineral em terras indígenas, sem consentimento dos titulares. Mineração apareceu de surpresa, um jabuti que foge ao objeto da ação constitucional sobre a tese do marco temporal. Uma matéria “ultra vires”, que contrabandeia interesse fora do escopo do processo.
Ao final, uma mensagem de desprezo pela vida indígena e de descompromisso com seus direitos constitucionais.
O STF julgou recentemente o “pacote verde” e tomou boas decisões nas chamadas ações climáticas. Reconheceu que proteção do meio ambiente e do clima é direito do qual dependem todos os demais direitos. Reconheceu que terras indígenas preservam a floresta amazônica, que por sua vez interfere no clima do planeta. Determinou medidas para sua proteção integral.
Parece contradição e incoerência, mas pode ser só desfaçatez. Triste exemplo de tribunal que, repare de novo, não faz o que diz nem diz o que faz. Rende-se ao poder econômico mais regressivo e renuncia à jurisdição, ao dever de dizer o direito. Não por convicção constitucional, mas por afinidade ao poder econômico que frequenta nas salas de jantar.
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Por que assumir responsabilidade de julgar com independência, apesar de desagradar aos comensais, se podemos abdicar da função e montar negociação onde o amigo vitorioso já se sabe de antemão?
Se o plenário se curvar à operação neocolonial, o STF vai renunciar duas vezes: primeiro, ao adotar conciliação (falsa ainda por cima); segundo, ao propor lei cuja constitucionalidade não poderá ser julgada, se lógica houver, pelo mesmo tribunal que a elaborou.
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